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Esbarrões [Tatiana Carlotti]

Esbarrões

Elisa era afeita a esbarrões. Coisa assim de repente, ombro no ombro, susto, pedido tímido de desculpas. Mania desde o jardim de infância, caminhar em linha reta na rua curva, sentido contrário na avenida, ziguezague no shooping, só para esbarrar nos outros. Foi o tio quem primeiro percebeu. Envergonhada, a menina corou. Pega no flagra, os dedos no nariz pequeno. Toma jeito, moleca.

Elisa foi crescendo, a mania também. Saía do colégio mais cedo para voltar a pé pra casa. Era incômodo olhar dentro do olho de alguém parado. Preferia o olho surpreso, furtivo, instantâneo e quem sabe um sorriso. Mulheres, homens, crianças. Elisa não escolhia a vítima, caminhava de cabeça baixa e pressentia a proximidade brusca do outro corpo. Cada esquina como uma promessa de encontro.

Soube logo cedo que para não se machucar era preciso manter o corpo leve, relaxado, deixá-lo ceder à pressão do estranho que, normalmente, tensionava ao vê-la sorrir sem um motivo aparente. Elisa amava sobrancelhas arqueadas e quando percebeu que no meio de um esbarrão podia tocar o ombro das pessoas, as coisas adquiriram outra espessura.

Na cidade grande esbarrões são comuns.

Era perfeito para a moça que agora caminhava com seus livros e fichários. Já tinha desenvolvido algumas táticas como confundir a vítima andando no mesmo passo ou parar de repente, para que esbarrassem nela por trás. Numa dessas quase se arrebentou. Um infeliz pisou no seu calcanhar com tamanha força que seu corpo foi sem resistência para o chão. Dessa vez, Elisa não sorriu como antes. Xingou o coitado que saiu correndo sem ajudá-la a se levantar.

Demorou a voltar às ruas depois do acidente. Até diminuiu a velocidade chegando perto das esquinas. Começava a compreender porque os corpos são tão tensos quando andam, mas isso dava uma vontade ainda maior de tocá-los. Era uma necessidade tão grande que meses depois, Elisa abandonou suas velhas estratégias e desenvolveu outras. De alguma forma, se quisesse esbarrar, aprenderia a cair.

E caiu algumas vezes.

Era impossível prever a força de um corpo que surgia de repente. Elisa prestava atenção em si mesma, no que sentiam seus braços e pernas, no desequilíbrio que a fazia oscilar pra lá e pra cá. Mentira dizer que decidia alguma coisa, mas agora quando pressentia a queda, girava o corpo e aos poucos compreendeu que o humor era a melhor saída. Já levantava rindo, zombando do ridículo dos próprios movimentos.

Então, um dia colocaram Elisa num carro e disseram: vai. Ela não foi. Era estranho um corpo que não fosse de carne e osso. Era estranho acelerar e frear. Era estranho não encostar nos outros carros parados no farol. Assustava-se com a velocidade das rodas e o estrondo que supunha caso batesse. Porque Elisa queria bater, era fato. Moto, carro, caminhão, ônibus, mas neste caso a morte se apresentava como um segundo possível e de todas as coisas no mundo Elisa nunca quis morrer.

Virou uma pedestre convicta e continuou esbarrando em corpos, muros cobertos de plantas, fontes d’água, barracas de feira, animais das praças. A mulher apreendia o mundo através do seu corpo propenso à textura dos outros, à velocidade do que se aproxima, ao calor de um fim de tarde.

Mas, de uns tempos prá cá, alguma coisa mudou.

Foi naquele dia, quando João saiu atrasado. Sem tempo de olhar o farol que piscava vermelho, o corretor de imóveis atravessou correndo ao som das buzinas para o outro lado da rua. Quando pulou na calçada se viu diante de Elisa, os olhos fechados, as mãos espalmadas, à espera do choque. João achou graça naquilo. Uma mulher de olhos fechados esperando o sinal abrir e se esqueceu da pressa, do apartamento na Rebouças, onde estaria em poucos minutos falando de rachaduras e armários embutidos.

Quando deu por si, Elisa percebeu que ainda não havia esbarrado no homem. Existia um pequeno espaço e o tempo inteiro entre eles. Ela não sabia nada de espaços repletos de tempo. João quis abraçar Elisa. Elisa quis abraçar João. Mas como abraçar alguém, sem mais nem menos, no meio da rua?

Foi assim que ambos sorriram e recuaram confusos.

Cada um no seu silêncio.


Tatiana Carlotti. Balzaquiana convicta e amante das letras. Existe neste contínuo espaço/tempo, sem muita pretensão de eternidade. No momento pulsa, quatro andares acima do solo, no centro de São Paulo. “Venta, eu gosto”. Ainda sonha...  Site: SobremargenS.

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