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POESIA MARGINAL. POESIA MAGISTRAL [Raul J.M. Arruda Filho]

POESIA MARGINAL. POESIA MAGISTRAL

Era uma vez um bando de poetas. Um monte de profetas. Gente fina. Gurizada carioca. Quase todos. Todos mergulhando de cabeça no caminho aberto por Oswald de Andrade, o santo padroeiro daquela temporada. No meio da turba alegre e alcoolizada, "emaconhada" e enamorada, um ou outro riquinho fazendo pose de rebelde. Sabe como é que é, a praia nivela, todo mundo é brother, apesar das visíveis distinções expostas pelo trademark dos calções, bermudas e biquínis que encantam as sombras e as sobras produzidas por aquele abraço do Cristo Redentor, retentor de uma série de questiúnculas e sentimentos.

Relax total entre o sol abrasador e os grãos de areia. Brasil, considerando que não queres mostrar a cara, teu nome é ilusão. De qualquer forma, como essa hora não é hora de papo sério, vamos deixar essa história para outra história. Os jornais e as televisões estão em outra. E, cara, o Rio de Janeiro é uma festa. Solta o som, DJ!

O Bernardo Vilhena tem um poema que fala que a cana tá brava a vida tá dura / Mas um tiro só não dá pra derrubar (Lobão musicou esses versos uma eternidade depois). Pois é, vida bandida essa de quem rabisca palavras versos lágrimas delírios sonhos – e não consegue o básico: publicar. Como é de conhecimento amplo, geral e irrestrito, a poesia não suporta a clausura das gavetas. Assim como todos os seres humanos, a poesia adora a liberdade de ser recitada, lida, manuseada, acariciada, chupada, fudida no meio do parque ou num beco sujo e escuro. A poesia quer ser objeto das taras mais perversas e das loucuras mais escusas. A poesia é sentimento e sabor (suco de fruta exótica, surpresas para o paladar e o cérebro).

A poesia vive a invadir a vida do leitor – apesar de alguns chatos a confundirem com lucro, política e sacanagens (aquelas que não geram gozo, que não permitem prazer).

Como o capitalismo sempre sustentou, poesia não dá camisa para ninguém. Poesia não produz dinheiro. O mercado quer investir em alguns produtos que possibilitem retorno financeiro rápido. Quimera pretender que poesia e comercio sejam aliados. Livros de poesia são inúteis. Não devem ser publicados.

Bela contradição: uns escrevendo, outros recusando publicar. Confusões no meio de campo exigem meio de campo criativo. Doses maciças de criatividade, muita vontade de brincar. É isso daí: brincar. Bola pra frente!

Quem primeiro engravidou da idéia a história não registrou o nome. Faz mal não. Original é quem plagia primeiro, nas sagradas palavras de Miguel Reale. Ou, em versão mais adequada aos fatos, que não seja o medo da loucura que nos obrigue a baixar a bandeira da imaginação (Guilherme Mandaro dixit).

A solução foi simples (como todas as boas idéias). Algumas resmas de papel em branco, várias folhas de papel pardo (ou de uma textura maior), tinta, mimeógrafo (daqueles que existiam, na época, em cada colégio) e um pouquinho de talento e inspiração. Um amigo artista plástico, quando não o próprio autor, desenhava a capa. Depois era só grampear tudo, fazer as aparas, dar um formato, digamos, mais convencional e ir à luta. Ou seja, aceitar (em termos) o pacto econômico e, misturado à missão civilizatória de divulgar a poesia entre os ímpios, promover o escambo sempre necessário à sobrevivência física dessa figura anacrônica, o poeta.

Livros mimeografados: tatuagem poética invadindo o espaço urbano. Bares, ruas, portas de igreja, shows musicais, saraus, vernissages. A invasão foi completa. Nem Átila, o rei dos Hunos, conseguiu fazer tanta bagunça. O velho ritmo desafinar o coro dos contentes, ta sabendo?

Mas, como dizia aquele sábio (às vezes não muito sábio), na prática, a teoria é outra. Os tempos eram bicudos. Pô, anos 70. Puta repressão. Não bastasse o reacionarismo da tradicional família brasileira, ainda tinha os milicos nas ruas. Crises políticas a toda hora, seqüestros de embaixadores, Araguaia, Apiúna, os melhores amigos no exílio ou mortos. Barra pesada, pesadíssima. AI−5, toque de recolher, ufanismo estúpido e analfabeto (Brasil: ame−o ou deixe−o), o tricampeonato mundial de futebol. Pura adrenalina.

Nesse cenário, a poesia era uma viagem, "a" viagem. Drogas pesadas iluminando a noite. E como em qualquer barato, cada usuário sente o efeito de forma diferente. De um lado, o romantismo meio careta de quem estava a fim de extrair sons e perfumes (paz e amor, bicho!). de outro, correntes e algemas. Maior loucura, experiências radicais (na forma, no conteúdo, na linguagem, nas discussões). Teatro de horrores, desmistificação da alienação que acompanhava a geração alucinação total. Por ultimo, efeito típico de um país sem tradições revolucionárias, a turma do deixa−disso. Aquela gente que procura aliar um pouco daqui, um pouco dali. Equilibrados no muro da mediocridade eles querem salvar, sim senhor, salvar a poesia (e a própria pele). Bobagens, é claro. Como diria Nelson Werneck Sodré, o Brasil está cheio de travestis intelectuais: aqueles que adoram estar à esquerda da esquerda para melhor servir a direita.

E assim, entre gregos e goianos, persas e fariseus, a vida cumpriu com o seu inexorável tropeçar. E o nome dos artistas ficou para sempre fixado entre as estrelas. Ou vai dizer que você nunca ouviu falar em Cacaso, Chacal, Charles, Ana Cristina Cesar, João Carlos Pádua, Chico Alvin, Eudoro Augusto, Afonso Henriques Neto, além de outros menos votados? Não acredito. Tá bom, acredito sim, a falta de conhecimento e memória são os nossos maiores patrimônios e as escolas estão superpreocupadas em ensinar macetes mnemônicos para quem quer ascender na escala social, sobra pouco tempo para a diversão.

Outra coisa: a poesia praticada, multiplicada, nos anos 70 recebeu vários apelidos, alguns até interessantes. Os principais são dois: poesia mimeógrafo e poesia marginal (Quampérios, personagem criado por Chacal, discorda enfaticamente dessa última conceituação e dispara: ah... a poesia. A poesia é magistral. Mas marginal pra mim é novidade. Você que e bem informado, me diga: a poesia matou alguém, andou roubando, aplicou algum cheque frio, jogou bomba no Senado?)

Então tá: vamos combinar que esses caras, malucos de carteirinha, escrevendo versos e vendendo os livros nas ruas, modificaram a paisagem. Deram um pouco mais de cor aos anos sombrios da repressão militar. Ou seja, para não dizer que não falei de flores, a poesia dos anos 70, marginal ou não, respirava política o tempo todo – como, aliás, é dever de toda manifestação artística e intelectual.

CINCO POEMAS DOS ANOS 70

(Neysa Campos)
um dia pronto
bato na tua porta
atiro na tua cara
o meu amor
e desço esta ladeira
assoviando


(Cacaso)
e com vocês a modernidade
meu verso é profundamente romântico
choram cavaquinhos luares se derramam e vai
por ai a longa sombra de rumores e ciganos.

ai que saudade que tenho de meus negros verdes
anos!


(Torquato Neto)
Cogito
eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos segredos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desaferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.


(Eduardo Kac)
para curar um amor platônico
só uma trepada homérica


(Luis Olavo Fontes)
Propriedade Privada
não tenho nada comigo
só o medo
e medo não é coisa que se diga.



*Nas fotos: Ana Cristina César, Cacaso, Chacal, Mário Faustino, Torquato Neto e Eduardo Kac.

Raul J.M. Arruda Filho, 53 anos, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”. 

Todos os direitos autorais reservados ao autor.

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