A MOIRA
Aos sete anos de idade, descobriu que um dos grandes segredos da vida era os temperos. Ainda menina, observava sua mãe com a barriga encostada no fogão, avental de algodão amarelado e puído preparando o almoço, o jantar. Várias panelas de alumínio, vários tamanhos, idades e histórias. Uma sempre com água esquentando. A forma e o bailado que as velhas colheres de pau se movimentavam, incorporando o sabor dos temperos aos alimentos e a agilidade com a faca, cortando e cruzando ervas e segredos de família que caiam para dentro das panelas.
Um dia puxou uma cadeira e encostou próxima ao fogão. Ajeitou seu miúdo corpo, em pé, e iniciou suas anotações mentais e visuais do que sua mãe fazia. Ouviu dela “o segredo é cozinhar com paixão”. Adorava sentir os aromas bem de perto e o calor feito uma nuvem transparente sair de dentro das panelas e invadir todo o interior de seu corpo pelas narinas. Magia. Ali sentia uma profunda e real felicidade em descobrir que os alimentos tinham vida e forma, que quando consumidos faziam uma grande mágica dentro do corpo - por vezes aquecendo, por vezes esfriando. Um prazer que ela ainda não sabia nomear.
E em pouco tempo, tomou aquela paixão para si. Com quase oito anos, preparava alguns pratos e inventava outros. Harmonizava o paladar das pessoas com um toque especial. Segredos que acreditava serem somente seus.
A menina cresceu, virou moça vistosa, depois mulher desejada e formosa. Mas a paixão, o prazer que tinha em segurar firme as colheres de pau e rodopiar dentro das panelas de alumínio, de barro, de ferro, de pedra sabão... Eram tantos utensílios que um visitante perdia de vista tamanha quantidade e diversidade. Poucos, muito poucos entendiam aquela paixão por cozinhar, por dominar as cores dos alimentos e misturar a acidez, o amargo e a doçura com maestria, mas sua casa estava sempre com visitas interessadas em provar de seus quitutes e de seu tempero irresistível e inigualável. Uma divindade na cozinha e o pecado da gula solto no ar.
Foi na contramão do dito popular “agarrar o marido pelo estômago”. Nunca quis se casar. Dizia que tinha descoberto o amor muito cedo e que o tinha amarrado pra si desde a primeira vez que vira sua mãe cozinhando. A fama de seus temperos ressoava longe e vinham amigos dos amigos, parentes dos parentes, desconhecidos, parente dos vizinhos enfim. Uma enorme teia de pessoas que vinham conhecer e se apaixonar pelo seu sabor e pela beleza de seu sorriso.
Com a idade, foi arcando sua coluna pra frente e já não conseguia mais lidar com as panelas como antes. Começou a dizer que sua morte viria quando não pudesse mais cozinhar, temperar a vida daqueles que se aproximavam dela, os desconhecidos, aflitos, angustiados, amargurados, solitários e desesperados que buscavam a cura através do que ela oferecia à mesa.
Quando partiu, ninguém ousou retirar uma panela sequer de sua cozinha, mas os amigos se revessavam para cuidar e manter sua enorme horta de temperos no quintal, lugar onde ela passava a outra metade de sua vida.
Maria de Fátima Venutti ou simplesmente Fátima Venutti. Paulistana de Osasco. Reside em Blumenau desde dezembro de 2002. Formada em Letras, escreve desde os 11 anos. Pág. na internet: Fátima Venutti.
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