Crise da meia idade
Os amigos do Dagoberto dizem que ele é mais caseiro que pão de milho! E, de fato, de segunda a sexta, só faz trabalhar e, quando o esperado final de semana chega, seus programas se resumem a sexo de meia e brigadeiro na panela (ultimamente mais brigadeiro do que sexo). Assim, não é de se espantar que um dia fosse acontecer. E aconteceu! Acordou entediado! Não que tivesse do que reclamar. Olhando para o lado, sabia que devia dar graças a Deus pela vida que levava. Se como funcionário público sobrevivia sem grandes contracheques, também não havia grandes contratempos. A verdade é que nunca passou aperto, apesar de não ter supérfluos na geladeira, nem tampouco podia reclamar da Glorinha, sua esposa, que vinha de longa e séria linhagem de donas-de-casa. Contudo, aconteceu! Não foi por um fato específico, mas pelo conjunto da obra! Talvez pela proximidade crescente dos cinquenta anos de idade, que lhe pareciam avançar mais rápido do que a distância que ainda o separava da aposentadoria. Talvez não! Depois, naquele momento, pouco lhe importava o motivo. Sabia somente que sua vida era tão previsível que ultimamente seu maior prazer era espirrar! Afinal, essa era a única coisa que ainda lhe acontecia de surpresa! Portanto, não é de se espantar que tenha se rebelado. Isso mesmo: Entediou-se! E, por conta disso, acordou diferente, ou, melhor, querendo que as coisas fossem diferentes! Só não sabia o quê!
– Glorinha, vamos fazer alguma coisa?
– Ahn? Que horas são? O despertador já tocou?
– Não. Quer dizer, são 5 horas. Ainda não está na hora!
– Então dorme Dagoberto, dorme.
– Querida, eu tô sentindo uma coisa estranha no peito. Uma coisa ruim... um aperto!
– Não será “gazes”, Dagoberto?
– Não! É uma angústia.
– Aaaah... Final de mês, querido! Normal.
– Glorinha, eu estava pensando. Vamos vender tudo e comprar um barco? Eu jogo fora minhas gravatas, crachá. Faço uma fogueira dos meus ternos. Podemos passar o resto da vida velejando pelo mundo, de porto em porto.
– Velejando? Eu enjoo, querido! Esqueceu? Fico mareada até quando tomo banho de banheira! Depois, já não tenho mais idade para passar o dia de biquíni!
– Hm... – pensando. – Então, vamos comprar uma moto e sair por aí. O que acha? Eu domando o asfalto e você abraçadinha na minha cintura – sugerindo no ouvido da esposa que, encolhida, tentava voltar a dormir. – Só alguns meses. A gente deixa as crianças na sua mãe! Imagina a cena: além de mim e você, só a poeira da estrada a pentear nossos cabelos! Não seria demais?
– Poeira, Dagoberto – virando-se para ele. – Você sabe que eu odeio poeira! Eu gosto de tudo bem limpinho. Não posso ver um pozinho que já quero varrer! Vai dormir querido, vai.
Cinco minutos depois...
– Querida? – cutucando-a. – Por que a gente não vende nossa casa e compra um motor-home? Poderíamos ir até o Chile. Não. Até a Patagônia. – Agora estava de joelhos em cima da cama. – Melhor ainda, dar a volta ao mundo! Isso. Uma volta ao mundo num motor-home! Hein? Hein?
– Dagoberto, nós já moramos numa quitinete, quando você ainda era estudante. Esqueceu o que é passar o dia num cubículo? Quando você espirrava na sala, chacoalhava o porta-retratos do quarto, lembra? Tô fora! Você tem mais alguma ideia ou eu posso voltar a dormir?
– Tenho sim, Glorinha. Por que você não VAI PRA @&%*# ?
Foram necessários vários dias e muitas flores até que a Glorinha finalmente concordasse em recebê-lo na casa dos pais dela! E ainda mais alguns dias para que ela topasse voltar para casa. Aos poucos, porém, as coisas foram voltando ao normal e hoje já nem falam mais no ocorrido. Preferem não comentar. Inclusive voltaram a comer brigadeiro na panela nos finais de semana e, vejam só, voltaram até a fazer amor. Só que agora, embora ela não tenha notado a diferença, ele antes tira as meias!
Jean Marcel- Escritor, professor universitário, palestrante. É pai de dois adolescentes. Um leitor voraz. Eclético, escreve contos, crônicas, romances e infanto-juvenil. Possui o blog brisaliteraria.com
2 comentários
Que delícia de texto, Jean Marcel! Humor benfeito, extraído de dois personagens aparentemente comuns, mas tão ricos de cotidiano como tantos, muitos de nós. Adorei o detalhe das meias.
Incrível a sua facilidade em descrever o dia a dia de um casal, Jean Marcel. Você escreve com fluidez, o texto rola gostoso e divertido. Amei! E, sim, também adorei o detalhe das meias.
Parabéns!
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