Darwinismo,
Racismo Cientifico e a Literatura Kardecista
A rede de televisão
BBC de Londres exibiu um documentário sobre Racismo Cientifico - Darwinismo e
Eugenia, disponível no Youtube, para explicar a perversa construção das teorias
raciais que afetaram a mentalidade do Ocidente com demonstrações de
intolerância e violência, devido à crença da superioridade de uma raça sobre a
outra, como acreditavam, na época, seus cientistas. Estas teorias
bioantropológicas não estigmatizaram apenas os negros, mas, boa parte do mundo
oriental se viu afetada por ela. E sua repercussão pode ser medida no âmbito
jurídico através das teorias criminológicas de Cesare Lombroso, para quem a
degeneração racial era a responsável pela criação de monstros e, não por
coincidência, suas acusações recaiam sobre o negro.
É longa a historiografia do racismo no Mundo Ocidental. Embora alguns
nomes surjam logo que o assunto é trazido à baila, como Gobineau (Ensaio Sobre
as Desigualdades das Raças); é com Charles Darwin, com a publicação de sua obra
célebre a Origem das Espécies, que a questão ganha contornos definitivos. E com
Georges Vacher de Lapouge e sua medição de crânios de macacos, negros e
europeus, com a conclusão da superioridade destes últimos sobre os demais – temos
reunidos todos os elementos que justificarão a corrida pela Partilha da África,
no expansionismo imperial, sem os remorsos do criminoso diante de seus atos de
ignomínia.
As idéias do racismo cientifico não impregnaram apenas a literatura
filosófica ou jurídica. As concepções religiosas foram diretamente afetadas na
sua construção do homem, a partir das suposições ditas cientificas, percebidas
pelos cultores da época. E se há culpa pela concordância com o ideário racista,
afirmado pela atmosfera positivista e empírico – lógica do período, não
ignoramos a dificuldade em negá-lo, porque contava com o apoio dos baluartes do
pensamento mais avançado a lhe sustentar os argumentos sobre a superioridade
racial de um povo sobre outro. Dentro de um panorama histórico em que Charles Darwin
inflamava as mentes mais progressistas com suas idéias, quem ousaria
contestá-lo? Mesmo que doze anos após a publicação da Origem das Espécies,
viesse o livro Descendants for Men que explicitaria, de uma vez, sua posição
dentro do debate, não restando dúvidas quanto ao lado em que se encontrava.
Dentro dos parâmetros propostos acima, sem a histeria ideológica
caracterizada em discussões semelhantes por toda a rede, adotamos o
rastreamento de literaturas que reforcem, dentro do século XIX, as políticas de
racismo, tendo as seguintes palavras chaves para a investigação: etnocentrismo,
raça, racismo, selvagem e civilizado. Hoje, na antropologia social, estas
palavras têm um sentido diverso daquele para os atores sociais do recorte
histórico abrangido – a publicação da Origem das Espécies (1859) e as
implicações de seu discurso. Optamos em assumir a investigação na literatura
produzida por Allan Kardec (Hippolyte Léon Denizard Rivail), codificador do
Espiritismo - corrente cientifica, filosófica e religiosa - baseados nos seus
seguintes livros: Livro dos Espíritos (1860), Evangelho Segundo o Espiritismo
(1864) e A Gênese (1868).
O Livro dos Espíritos é um conjunto de perguntas e respostas acerca do
funcionamento do mundo espiritual e sua interação com o mundo material; O
Evangelho Segundo o Espiritismo é uma nova interpretação dos evangelhos à luz
do novo conhecimento trazido por Allan Kardec através dos espíritos; e, A
Gênese, trata sobre a criação do mundo e do universo segundo os paradigmas do
espiritismo. Os outros dois livros formadores do Pentateuco kardequiano, O
Livro dos Médiuns e O Céu e o Inferno, e, obras colaterais, como O que é
Espiritismo? - não participaram do
recorte para a investigação em específico sobre a relação do negro com a obra
kardequiana.
No Livro dos Espíritos, acerca da problematização do negro, surge a
questão 222, subitem 6:
Por
que há selvagens e homens civilizados? Se tomardes uma criança hotentote recém
- nascida e a educardes nas escolas mais renomadas, fareis dela algum dia um
Laplace ou um Newton?
Em
relação à sexta questão, sem dúvida se dirá que o hotentote é de uma raça
inferior. Então perguntaremos se o hotentote é ou não um homem. Se é um homem,
por que Deus o fez, e à sua raça, deserdados de privilégios concedidos à raça
caucásica? Se não é um homem, por que procurar fazê-lo cristão?
Notamos que desde a
formulação da pergunta e seu desenlace há uma explicitação do lugar do
observador. A divisão entre selvagens e civilizados reforça a zona de conforto
do enunciador e sua curiosidade cientifica perpetrada na indagação: se o
selvagem, mesmo educado nas melhores instituições, chegaria, um dia, a se
tornar um grande cientista, supondo um déficit de inteligência para tal. E, não
desconfiando do erro de procedimento, termina com estocada fatal Se é um homem
– frase condicional -, por que Deus o fez, e à sua raça, deserdados de
privilégios concedidos à raça caucásica? Aludindo-se a própria raça a que,
afinal, pertencia o Codificador do Espiritismo.
A influência das idéias sobre raça contidas
nos trabalhos científicos da época transparece com nitidez na literatura acima
exposta, lembramos que a publicação d’O Livro dos Espíritos ocorre um ano após
a publicação do livro A Origem das Espécies, portanto, parece estar ancorada
sob seu influxo.
Em outra questão, é encarada como punição a
encarnação em corpos de raças inferiores:
273.
Será possível que um homem de raça civilizada reencarne, por exemplo, numa raça
de selvagens?
“É;
mas depende do gênero da expiação. Um senhor, que tenha sido de grande
crueldade para os seus escravos, poderá, por sua vez, tornar-se escravo e
sofrer os maus tratos que infligiu a seus semelhantes. Um, que em certa época
exerceu o mando, pode, em nova existência, ter que obedecer aos que se curvaram
ante a sua vontade. Ser-lhe-á isso uma expiação, que Deus lhe imponha, se ele
abusou do seu poder. Também um bom Espírito pode querer encarnar no seio
daquelas raças, ocupando posição influente, para fazê-las progredir. Em tal
caso, desempenha uma missão.”
Observe-se o
exemplo contido na resposta, a presença da dicotomia senhor/escravo e a leve
indignação que permeia a pergunta “Será possível...” A perspectiva darwinista
pode ser enxergada através resposta à seguinte questão:
689.
Os homens atuais formam uma criação nova, ou são descendentes aperfeiçoados dos
seres primitivos?
“São
os mesmos Espíritos que voltaram, para se aperfeiçoar em novos corpos, mas que
ainda estão longe da perfeição. Assim, a atual raça humana, que, pelo seu
crescimento, tende a invadir toda a Terra e a substituir as raças que se
extinguem, terá sua fase de crescimento e de desaparição. Substitui-la-ão
outras raças mais aperfeiçoadas, que descenderão da atual, como os homens
civilizados de hoje descendem dos seres brutos e selvagens dos tempos
primitivos.”
Estas três
perguntas situam o leitor a respeito da posição do negro n’ O Livro dos
Espíritos.
Em obras
colaterais, como *A Teoria da Beleza, presente em Obras Póstumas ,
potencializa a concepção racista quando trata da aparência do negro –
imperfeita, antiestética e primitiva - mesmo não sendo alvo da explanação,
merece ter o trecho transcrito abaixo:
* O negro pode ser belo para o negro, como um gato é
belo para um gato; mas não é belo no sentido absoluto, porque os seus traços
grosseiros, seus lábios espessos acusam a materialidade dos instintos; podem
bem exprimir as paixões violentas, mas não saberiam se prestar às nuanças
delicadas dos sentimentos e às modulações de um espírito fino.
Eis porque podemos, sem fatuidade, eu creio, nos dizer
mais belos do que os negros e os Hotentotes; mas talvez também seremos, para as
gerações futuras, o que os Hotentotes são em relação a nós; e quem sabe se,
quando encontrarem os nossos fósseis, não os tomarão pelos de alguma variedade
de animais.
Se restarem
dúvidas, acerca da influência darwinista, podem ser consultadas duas outras
questões, ainda d’O Livro dos Espíritos, que mantêm entre si certa tensão:
“Sim,
mas para que estas as elevem, não para embrutecê-las ainda mais pela
escravização. Durante longo tempo, os homens consideram certas raças humanas
como animais de trabalho, munidos de braços e mãos, e se julgaram com o direito
de vender os dessas raças como bestas de carga. Consideram-se de sangue mais
puro os que assim procedem. Insensatos! Nada vêem senão a matéria. Mais ou
menos puro não é o sangue, porém o Espírito.”
832.
Há, no entanto, homens que tratam seus escravos com humanidade; que não deixam
lhes falte nada e acreditam que a liberdade os exporia a maiores privações. Que
dizeis disso?
“Digo
que esses compreendem melhor os seus interesses. Igual cuidado dispensam aos
seus bois e cavalos, para que obtenham bom preço no mercado. Não são tão
culpados como os que maltratam os escravos, mas, nem por isso deixam de dispor
deles como de uma mercadoria, privando-os do direito de se pertencerem a si
mesmos.”
No Evangelho
Segundo o Espiritismo, as seguintes passagens observadas incorporam o modus
operandi acima exposto:
INSTRUÇÃO
DOS ESPÍRITOS
Mundos
inferiores e mundos superiores
O
Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap. 3 - Há muitas moradas na casa de meu Pai.
Mundos
de expiações e de provas
13.
Que vos direi dos mundos de expiações que já não saibais, pois basta observeis
o em que habitais? A superioridade da inteligência, em grande número dos seus
habitantes, indica que a Terra não é um mundo primitivo, destinado à encarnação
dos Espíritos que acabaram de sair das mãos do Criador. As qualidades inatas
que eles trazem consigo constituem a prova de que já viveram e realizaram certo
progresso. Mas, também, os numerosos vícios a que se mostram propensos
constituem o índice de grande imperfeição moral. Por isso os colocou Deus num
mundo ingrato, para expiarem aí suas faltas, mediante penoso trabalho e
misérias da vida, até que hajam merecido ascender a um planeta mais ditoso.
14.
Entretanto, nem todos os Espíritos que encarnam na Terra vão para aí em expiação. As raças a
que chamais selvagens são formadas de Espíritos que apenas saíram da infância e
que na Terra se acham, por assim dizer, em curso de educação, para se
desenvolverem pelo contacto com Espíritos mais adiantados. Vêm depois as raças
semicivilizadas, constituídas desses mesmos os Espíritos em via de progresso.
São elas, de certo modo, raças indígenas da Terra, que aí se elevaram pouco a
pouco em longos períodos seculares, algumas das quais hão podido chegar ao aperfeiçoamento
intelectual dos povos mais esclarecidos. Os Espíritos em expiação, se nos
podemos exprimir dessa forma, são exóticos, na Terra; já tiveram noutros
mundos, donde foram excluídos em conseqüência da sua obstinação no mal e por se
haverem constituído, em tais mundos, causa de perturbação para os bons. Tiveram
de ser degradados, por algum tempo, para o meio de Espíritos mais atrasados,
com a missão de fazer que estes últimos avançassem, pois que levam consigo
inteligências desenvolvidas e o gérmen dos conhecimentos que adquiriram. Daí
vem que os Espíritos em punição se encontram no seio das raças mais
inteligentes. Por isso mesmo, para essas raças é que de mais amargor se
revestem OS infortúnios da vida. E que há nelas mais sensibilidade, sendo, portanto,
mais provadas pelas contrariedades e desgostos do que as raças primitivas, cujo
senso moral se acha mais embotado.
O
Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap. 3 - Há muitas moradas na casa de meu Pai.
O
Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap. 4 - Nascer de Novo
No
livro A Gênese, consta que os negros e os indígenas não descendem da Raça
Adâmica
Raça
adâmica
38. -
De acordo com o ensino dos Espíritos, foi uma dessas grandes imigrações, ou, se
quiserem, uma dessas colônias de Espíritos, vinda de outra esfera, que deu
origem à raça simbolizada na pessoa de Adão e, por essa razão mesma, chamada
raça adâmica. Quando ela aqui chegou, a Terra já estava povoada desde tempos
imemoriais, como a América, quando aí chegaram os europeus. Mais adiantada do
que as que a tinham precedido neste planeta, a raça adâmica é, com efeito, a
mais inteligente, a que impele ao progresso todas as outras. A Gênese no-la
mostra, desde os seus primórdios, industriosa, apta às artes e às ciências, sem
haver passado aqui pela infância espiritual, o que não se dá com as raças
primitivas, mas concorda com a opinião de que ela se compunha de Espíritos que
já tinham progredido bastante. Tudo prova que a raça adâmica não é antiga na
Terra e nada se opõe a que seja considerada como habitando este globo desde
apenas alguns milhares de anos, o que não estaria em contradição nem com os
fatos geológicos, nem com as observações antropológicas, antes tenderia a
confirmá-las.
39. -
No estado atual dos conhecimentos, não é admissível a doutrina segundo a qual
todo o gênero humano procede de uma individualidade única, de há seis mil anos
somente a esta parte. Tomadas à ordem física e à ordem moral, as considerações
que a contradizem se resumem no seguinte:
Do
ponto de vista fisiológico, algumas raças apresentam característicos tipos
particulares, que não permitem se lhes assinale uma origem comum. Diferenças
que evidentemente não são simples efeito do clima, pois que os brancos que se
reproduzem nos países dos negros não se tornam negros e reciprocamente. O ardor
do Sol tosta e brune a epiderme, porém nunca transformou um branco em negro,
nem lhe achatou o nariz, ou mudou a forma dos traços da fisionomia, nem lhe
tornou lanzudo e encarapinhado o cabelo comprido e sedoso. Sabe-se hoje que a
cor do negro provém de um tecido especial subcutâneo, peculiar à espécie.
Há-se, pois, de considerar as raças negras, mongólicas, caucásicas como tendo
origem própria, como tendo nascido simultânea ou sucessivamente em diversas
partes do globo. O cruzamento delas produziu as raças mistas secundárias. Os
caracteres fisiológicos das raças primitivas constituem indício evidente de que
elas procedem de tipos especiais. As mesmas considerações aplicam,
conseguintemente, assim aos homens, quanto aos animais, no que concerne à
pluralidade dos troncos.
40. -
Adão e seus descendentes são apresentados na Gênese como homens sobremaneira
inteligentes, pois que, desde a segunda geração, constroem cidades, cultivam a
terra, trabalham os metais. São rápidos e duradouros seus progressos nas artes
e nas ciências. Não se conceberia, portanto, que esse tronco tenha tido, como
ramos, numerosos povos tão atrasados, de inteligência tão rudimentar, que ainda
em nossos dias rastejam a animalidade, que hajam perdido todos os traços e,
até, a menor lembrança do que faziam seus pais. Tão radical diferença nas
aptidões intelectuais e no desenvolvimento moral atesta, com evidência não
menor, uma diferença de origem.
Na literatura
kardequiana, há a utilização dos termos científicos da época, da apropriação de
seus conceitos e, portanto, de seus equívocos. A suposição da superioridade de
uma raça sobre outra caiu por terra. Hoje, entendemos que o que existe, de
fato, são culturas – sistemas que devem ser entendidos a partir deles próprios
para a compreensão de suas peculiaridades. Embora os adeptos do espiritismo
possam reagir com mal-estar em relação a abordagem, não é escusado lembrar que
um livro é produtos das forças históricas a que estava submetido o seu autor e
não se pode concebê-lo sem o registro do impacto das idéias produzidas à época.
Não se pode negar a Charles Darwin a guinada intelectual provocada pelo seu
livro no Ocidente e não se pode desqualificá-lo, apesar do que hoje nos parece
politicamente incorreto, por ter participado dos posicionamentos intelectuais
em voga – à época - como um ator social ativo na produção da mentalidade do
período. Os argumentos expostos não invalidam a crença dos kardecistas em vidas
futuras e passadas; a reencarnação como mecanismo de justiça divina para o
resgate de dívidas ou qualquer outra coisa relacionada ao universo em que está
instalada, mas, procura revisar, como dito acima, a influência do discurso
darwinista em outras plataformas de produção textual.
Mariel Reis, poeta, ensaísta e escritor, publicado em revistas
virtuais. Lançou o livro A Arte de Afinar o Silêncio, Editora Ponteio (2012).
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Um comentário
Muito interessante. Não sou kardecista, mas tenho certa afinidade pelo espiritismo. Mas reconheço que Kardec de fato era racista. Achei a conclusão do texto fenomenal! Parabéns!
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