Eu tenho uma gata e não sei como usá-la [Rônei Rocha]
Sempre odiei gatos. E sempre adorei cachorros. Tinha todos aqueles argumentos que as pessoas que odeiam gatos utilizam, mas hoje eu sei que eu não aguentava era ser rejeitado por eles. Lá vinha eu, cheio de amor pra dar, e lá iam eles, virando as costas pra mim; ou pior, fazendo aquele ruído ameaçador que serve para transmitir, ninguém sabe como, o arrepio deles pra nós.
O fato de eu nunca ter dividido a residência com um felino era um simples detalhe. Eu também nunca provei o tal do jiló, mas tenho certeza de que o nosso encontro será mera formalidade, já que eu o detestarei do fundo do meu estômago.
Porém, meus conceitos foram dolorosamente arranhados cinco meses atrás, quando as minhas filhas me obrigaram a adotar uma gata. Os primeiros dias foram aquele calvário previsto, com noites mal dormidas e o trabalho pesado sobrando para os avós. Pois não é que a abóbora vira cinderela às seis horas da manhã? Então, eis que as minhas madrugadas de escritor solitário ganharam a companhia de uma tigresa manhosa. Se o tempo todo ela me usa como seu arranhador favorito e parece estar viciada no gostinho do meu sangue, é quando estamos sós que ela ronrona, abraça e se esfrega languidamente em mim.
Não é por ela ter me seduzido que eu perdi a noção da realidade e do perigo. Eu sei que ela é uma abusada. Escala sem nenhuma cerimônia a minha existência só para poder se aninhar no calor do meu pescoço. Também sei que ela é egoísta, irascível, violenta, teimosa e imediatista. Mas, afinal de contas, ninguém é perfeito.
Descobrir este gosto foi uma grande surpresa, mas não provocou nenhum estrago na minha vida — com exceção das cicatrizes na pele. Bem diferente do que aconteceu na vida de um conhecido meu. Um senhor, já entrando na velhice, que rechaçou um parente muito próximo quando descobriu que este tinha uma doença incurável. O vaso quebrou, e sua relação consigo próprio nunca mais foi igual. Deprimiu-se. Não aceitava ter se transformado, segundo os seus conceitos, numa pessoa tão horrível. Depois que melhorou da depressão, foi deixado pela esposa. Mas ele, bem antes dela, de tão decepcionado, já havia assinado a separação de si mesmo.
Imagino que deve ter sido uma ruptura mental semelhante a que acontece com aquele machão que tem a sala cheia de armas — e que vive ameaçando matar algum filho, seu ou de qualquer outro, caso note no traidor o menor indício de homossexualidade — quando descobre no seu íntimo um porão cheio de borboletas e um sótão com uma belezura de jardim.
Não são raros os que cumprem a mórbida promessa e matam, real ou metaforicamente, a quem eles consideram um impostor. Por enquanto, a única coisa quebrada aqui em casa foram uns porta-retratos; e embora a vontade de bater com um gato, digo, rato morto, na criminosa tenha sido muito grande, ninguém matou ninguém. Ainda. Ah! Sua gata desgraçada! Não me morde assim, que eu posso até… me apaixonar.
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