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MEU QUERIDO CANALHA [Raul J.M. Arruda Filho]

MEU QUERIDO CANALHA

Não há mais canalhas como antigamente. Essa constatação elementar não é fruto do saudosismo. Tampouco serve de alívio. Por diversas razões – nenhuma delas digna de mérito – o romantismo se tornou decadente e saiu de moda. O refinamento, a criatividade e a sutileza não mais constituem elementos valorizados pela modernidade. Assumiu o  proscênio desse teatro pouco crível que chamamos de vida a selvageria, a grosseria, a inconveniência e a maldade (de acordo com as regras mais elementares do realismo). 


Segundo o dicionário Aurelião, canalha é sinônimo de vil, reles, infame, velhaco. São bons adjetivos. Quase invejáveis. Embora não sirvam para explicar que a canalhice, por definição, não precisa – digamos – ser cruel ou perversa. Apenas mal-intencionada. O suficiente para praticar amiúde atos pouco dignos do que se convencionou chamar de elevado comportamento social.


Se alguém, por exemplo, cometer a imprudência de esquecer a carteira (com documentos e dinheiro) em lugar próximo de mãos leves e rápidas, qualquer queixa posterior será inútil. O canalha possui raciocínio instantâneo, é um mestre prestidigitador – desses que dominam a doce arte da ilusão. Com um amplo arsenal de truques (ópticos, emocionais, físicos), o canalha mostra que nasceu para seduzir, iludir, enganar. Não é pouca coisa. Ou coisa pouca. Que, diga-se de passagem, não lhe interessa. O bom canalha – ou o canalha do bem – não possui escrúpulos, sempre está com disposição para saquear o que for possível ou o que estiver ao seu alcance. Nunca deixa passar uma oportunidade.

Em um mundo que idolatra o bom-comportamento e a vigilância intensiva, muitos desses episódios raramente terminam bem. Na verdade, o mais frequente é acabar mal. Que a desgraça atinge a todos os espertos com enervante suplício democrático. O destino inglório não serve de lição ou impedimento para que surja no horizonte um novo espécime dessa fauna maldita. No mundo dominado pelos processos de reprodução técnica, a todo instante surge alguém com a pretensão de ser mais astuto do que os seus semelhantes.

Ao mesmo tempo, o canalha, assim como a onça-pintada não consegue esconder a cor de sua pelagem, não logra encobrir suas características mais patéticas. Ou hilárias. A cada instante, como se estivesse predestinado ao farsesco, produz material capaz de garantir as mais estrondosas gargalhadas.

Cinco narrativas de seis escritores constituem a coletânea Meu Querido Canalha, editada em 2004. Não são histórias edificantes. Muito pelo contrário. E estão centradas em uma espécie particular de canalha: o conquistador barato. Mais do que atletas sexuais, esses personagens não economizam lascívia, volúpia, infâmias e outras sem-vergonhices. Azar de quem estiver próximo.

O texto de Ruy Castro, La Petite Mort, está centralizado na história de Guilherme, uma espécie de Casanova carioca. Enquanto relembra as aventuras picarescas do conquistador, o narrador transporta as cinzas do amigo. O sujeito sofreu um ataque cardíaco enquanto realizava o ato. O ato sexual. O orgasmo (la petite mort, segundo os franceses) se transforma em morte gloriosa (la grand mort). Entre um evento e outro, milhares de peripécias, inclusive a inevitável extorsão policial.

A Ave-Maria de Schubert, de Carlos Heitor Cony, como cabe a um texto escrito por ex-seminarista, trabalha com questões básicas: virgindade, sedução, culpa. A descrição que faz de certos ambientes sórdidos, onde a juventude e os casais unidos pela infidelidade conjugal costumavam resolver problemas básicos nos anos 50 do século passado, é surpreendente. Quase um tratado antropológico. Mas, essa parte da narrativa não passa de um preâmbulo para um desfecho hilário.

O Bom Canalha foi escrito por Geraldo Carneiro, a partir de uma sinopse de Bráulio Pedroso. Entre o mito do filho pródigo e o golpe do baú, muitas trapaças são possíveis. A história (que talvez não seja verdadeira) de Luís (ou Alberto) transita por terreno pantanoso. Ele ambiciona enganar Matilde e Adriana. Enquanto articula tomar o dinheiro da primeira, frequenta a cama da segunda.


Aldir Blanc é um dos melhores humoristas brasileiros. Infelizmente, poucos sabem disso. Alguns de seus contos e crônicas, que retratam de forma primorosa a vida suburbana, são antológicos. Homem que é Homem não é exceção. O narrador conta um episódio cheio de detalhes acessórios ocorrido no governo Getúlio Vargas. Cafajestada. Das boas. Envolvendo fêmea. Linda de merecer adoração, uma verdadeira musa de letra do Orestes Barbosa. Como compete ao tema, o inevitável final infeliz dá o ar da graça, perdão, da desgraça. 


O capítulo final coube ao Marcelo Madureira – que não negou fogo e seguiu os preceitos do que há de mais escroto na malandragem carioca. O narrador em primeira pessoa, sem economizar detalhes (os piores), relata, em Agnus Dei, uma história de sedução. Sem a mínima piedade encantou a viúva do General. Aproveitou a carência e mandou ver. Ou melhor, fez coisas do arco da velha – na velha. Inacreditável. O remorso no dia seguinte – da senhora. No intervalo da narrativa, o garanhão ainda teve cinismo suficiente para contar outra aventura sexual ocorrida em casa de suingue. Maluquices de quem sempre disse a quem quisesse ouvir Eu sou do bem. Bem canalha.


Meu Querido Canalha é livro para ler em final de semana. Como diversão. Sem pretensão de ensinar coisa alguma. Apenas uma fonte para grandes gargalhadas. Afinal, dentro de cada um de nós (homens e mulheres) habita um canalha - que sempre arranja uma desculpa esfarrapada para não pagar o aluguel.


(P.S: pela ordem, fotos de Ruy Castro, Carlos Heitor Cony, Aldir Blanc, Geraldo Carneiro e Marcelo Madureira)

Raul J.M. Arruda Filho, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”. 
Todos os direitos autorais reservados ao autor.

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