Opinião
Discutiram desde os primeiros encontros. Porque ele
gostava de cães e ela amava gatos. Porque o melhor dia da semana era
sexta-feira, mas não para ele, que preferia o sábado. Assistir ao jogo ouvindo
rádio, coisa de maluco, debochava ela. Ou não, rebatia ele. Lavar os cabelos
todos os dias; ou em dias alternados. Tomar chope com ou sem colarinho. Ser
protestante; ser católico, espírita, budista, ateu.
Com os anos, casaram-se. Igreja ou cartório. Poucos ou
muitos convidados. Pela manhã, no inverno; à noite, na primavera. Não tiveram
filhos. Ninguém queria. Mas discutiram até sobre os porquês. Ela, porque era
mulher de carreira, bem sucedida e sem tempo, Ele, por qualquer motivo
diferente do dela.
Carro branco; moto preta. Macarrão com molho de
alcaparras; camarão na moranga. Lispector, a melhor. Hilst, a incomparável. E
enquanto ela escutava jazz no home theatre, ele aumentava o volume dos
clássicos no headphone.
Discutiram muito sobre sexo, o deles, o dos outros, o dos anjos. E sobre a cor
do mar, azul, verde, acinzentado. Sobre verduras, estrelas, rodapés,
sentimentos, fantasmas, sogras, drogas, duendes, países, escovas de dentes.
Cada um — com sua couve ou agrião, com hipernovas ou anãs, com sua Áustria ou
Dinamarca —, seguiu em
frente. Prontos, sempre, para a próxima rodada de
opiniões.
Quando ela ficou doente, discutiram sobre o diagnóstico,
antes e depois de o médico dizer que era grave. Tratamento tradicional ou
alternativo; em casa ou no hospital; com ou sem cirurgia. Ela pediu para
morrer, ele disse que não.
Ela morreu assim mesmo.
Ele foi para casa. Fechou as cortinas, arrumou, lavou, recolheu o lixo.
Recolheu também, em algumas malas, tudo o que era dela.
Depois, carregou consigo para o quarto o porta-retratos prateado e o colocou no
travesseiro ao seu lado. Antes de dormir, disse para a foto dela: "Você
diz que morreu.
Mas amanhã nós vamos discutir sobre isso, viu?".
Cinthia Kriemler - Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
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