AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE, DE JOSÉ SARAMAGO
O ano novo chegou e trouxe uma grande mudança a um país. A morte, cansada de tantas críticas e ofensas, interrompeu as suas atividades.
No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles acidentes de automóvel tão frequentes em ocasiões festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam mutuamente nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em primeiro lugar. A passagem do ano não tinha deixado atrás de si o habitual e calamitoso regueiro de óbitos, como se a velha átropos da dentuça arreganhada tivesse resolvido embainhar a tesoura por um dia. Sangue, porém, houve-o, e não pouco. (p. 11)
Este fato absolutamente novo e sem nenhum precedente colocou o governo diante de uma grande crise: funerárias sem serviços, seguradoras preocupadas com a maneira correta de realizar novos contratos e garantir os já firmados, hospitais lotados, pessoas desesperadas e nenhuma resposta lógica ou plausível.
A Igreja, instituição de enorme importância na maioria dos países, também se viu diante de um grande problema: se ninguém morre, como incentivar os fiéis a agirem nos caminhos da fé se o pilar da religião é a ressurreição?
A mídia, desesperada e sem receber uma informação correta, coerente ou, no mínimo, plausível, começou a dizer que eles estavam no país ideal. Que não morrer era um presente. A população, pautada nessa idéia, iniciou um movimento patriota. Contudo, a suposta “felicidade” não durou por muito tempo.
Acontece que em meio ao caos e após sete meses de inatividade, a morte, na segunda parte do livro, retorna as suas atividades. Contudo, novamente apresenta uma surpresa à população: todos seriam informados, por meio de carta, da data da morte. O objetivo era permitir que as pessoas se preparassem, elaborassem testamentos etc. Porém, nem tudo correu como esperado. Uma das cartas enviadas pela morte voltou. Uma nova tentativa foi feita e novamente a carta retornou.
Intrigada com a situação, a personagem principal da história, se personifica. Com forma humana e no corpo de uma mulher, ela segue em busca de uma resposta para o ocorrido. A partir disso, surge a grande surpresa reservada para o final.
Em meio a esse contexto, Saramago narra uma história envolvente, repleta de ironias e se senso de humor. Como característica típica de todos os seus livros, critica firmemente o governo (que aqui, chega a se associar com um grupo denominado “maphia”), a igreja, Deus (a quem se refere sempre com letra minúscula) e as instituições políticas como um todo. Há também uma forte reflexão sobre moral e valores humanos.
Tudo isso somado ao seu estilo próprio de escrita, que é caracterizado por frases longas, com diálogos inseridos nos próprios parágrafos e sem o uso de travessões, vírgulas colocadas onde comumente se utiliza ponto final etc, fizeram desta obra um grande sucesso e uma referência importantíssima na literatura.
Com um misto entre a realidade e a imaginação, que também uma das características visíveis em todos os livros do escritor, esta obra consegue prender a nossa atenção do início ao fim. A leitura transcorre agradável e a maneira própria com a qual o autor escreve em momento algum dificulta ou impede a compreensão geral do texto.
Passagens interessantes:
A vantagem da igreja é que, embora às vezes o não pareça, ao gerir o que está no alto, governa o que está em baixo. (p. 19/20)
Com as palavras todo cuidado é pouco, mudam de opinião como as pessoas. (p. 65)
Como alguém já disse, tudo que possa suceder, sucederá; é uma mera questão de tempo, e, se não chegámos a vê-lo enquanto por cá andávamos, terá sido porque não tínhamos vivido o suficiente. (p. 81)
(...)Para pouca vida vale mais nenhuma. (p. 102)
A propósito, não resistiremos da recordar que a morte, por si mesma, sozinha, sem qualquer ajuda externa, sempre matou muito menos que o homem. (p. 107)
Isabela Lapa e Kellen Pavão – Administradoras do blog Universo dos Leitores, que fala de livros e de tudo que estiver relacionado a estes pequenos pedaços de papel que nos transferem do mundo real para o universo dos sonhos, das palavras e da felicidade!
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