ANNA KARENINA, O FILME
As muitas qualidades da última adaptação cinematográfica de Anna Karenina (Dir. Joe Wright, 2012) não podem ser negadas. Mas, o filme, simultaneamente, constitui um exemplo singular das limitações que envolvem a transição entre as linguagens. A adaptação criativa de Tom Stoppard sequer se aproxima do caudaloso (e escandaloso) romance de Liev Nicoláievitch Tolstói (1828-1910). As mais de 900 páginas (dois volumes na edição da Editora Abril) estão em dimensão oposta daquela que é proposta por duas horas de projeção na tela grande. O cinema, quando adapta os clássicos literários, (re)corta diversos elementos na sala de montagem. Apenas a espinha dorsal sobrevive – muitas vezes nem isso.
Os detalhes e as cenas que constituem o romance, e que estão ausentes do filme, foram substituídos pelos mecanismos de sedução do teatro. A adaptação cinematográfica aposta em um grande espetáculo coreográfico – reforçado pelos figurinos e pelo constante abrir e fechar de portas. Os cenários, que se movimentam com a mesma intensidade dos personagens,mudam a todo instante e, além de contribuírem para a reconstituição de época, introduzem na carpintaria dramática uma maleabilidade esplendorosa. Esse efeito está refletido, de maneira complementar, no ballet das câmeras (principalmente nos travellings). A fotografia induz o espectadora participar do jogo de faz-de-conta que caracteriza as mimeses artísticas.
Anna (Keira Knightley), esposa de Alexei Alexandrovitch Karenin (Jude Law), mora em São Petersburgo, capital do Império Russo. Mulher enérgica, que tem tudo (beleza, riqueza, um filho), atenta aos perigos sociais que envolvem os desacertos familiares, resolve salvar o casamento do irmão, que foi flagrado pela esposa com a amante.
Na estação ferroviária de Moscou, Anna conhece o Conde Alexei Kirilovitch Vronsky (Aaron Taylor-Johnson), que está cortejando a Princesa Ekaterina Alexandrovna Shcherbatskaya (Alicia Vikander) – a grande paixão de Konstantin Dmitrievitch Levin (Dumhnall Gleeson).
O conflito amoroso estabelece a contradição matrimonial. Anna não percebe que salvar o casamento do irmão implica em destruir o próprio. Por isso, falha em encontrar antídoto para os sentimentos que a atormentam. Com a fome de um predador impiedoso, desses que medem o sucesso pessoal pela quantidade de mulheres que sucumbem aos prazeres sexuais que oferece, Alexei Vronsky, com a prepotência dos que estão acostumados a vencer, cerca a presa e a deixa sem saída.
Anna não demora a se entregar – tão logo percebe quão patética se mostra a resistência que esboça. A luxúria da traição dissolve escrúpulos. E o caso extraconjugal, que deveria ser apenas um episódio sem muita importância na vida deles, se transforma em uma paixão tórrida.
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Primeira edição (1878) |
Karenin, ao perceber, depois de uma corrida de cavalos, que a mulher está se envolvendo em complicações amorosas, com o estoicismo dos cornos mansos, faz um alerta para que as aparências sejam mantidas. Infelizmente, por diversos motivos, inclusive uma gravidez do amante, o caso se torna público. Algum tempo depois de dar a luz, Anna resolve abandonar o marido (que exige ficar com a guarda dos filhos) para ir viver com Vronsky – que também está mortalmente apaixonado.
Os consequentes desdobramentos dessa decisão, coerentes com os preceitos morais do Império Russo, deságuam em tragédia. Anna, advertida por Vronsky que não deve ir ao teatro, resolve contrariá-lo. A reação pública à sua presença está expressa em uma frase, pronunciada por uma ex-amiga: Eu a visitaria se tivesse infringido apenas a lei. Mas ela infringiu as regras. Em outras palavras, a sociedade perdoa a traição conjugal, mas não aceita que o amante substitua publicamente o marido.
O restante da história segue o figurino do romantismo que está se transformando em realismo. Em síntese: Anna fica doente, volta para a casa do marido, retoma o caso com o amante, pede o divórcio, não consegue aplacar a alma torturada e, na estação ferroviária, se joga na frente de um trem.
Para não se afastar muito do enredo original, o filme também relata, em paralelo, a história amorosa entre a Princesa Ekaterina e Konstantin. Ironicamente, são os personagens secundários que encontram a felicidade.
P.S: A suntuosidade cinematográfica de Anna Karenina não diminui o grande sacrilégio que é ver personagens russos falando a língua inglesa. Esse tipo de crime jamais deveria ser permitido.
Raul J.M. Arruda Filho, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”.
Todos os direitos autorais reservados ao autor.
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