Biografias são formas literárias que espelham o prazer de manipular o “real”. Sem constrangimento ou arrependimento.
A vida adora imitar a ficção – e a ficção costuma fazer o mesmo com a vida. Aliás, nessa areia movediça, nada é impossível: falsificar documentos, omitir situações vergonhosas, edulcorar ações e circunstancias, inventar heroísmos. A imagem “perfeita” do biografado supera os escrúpulos e se mistura com a lenda. Ou seja, a verdade histórica difere da verdade concreta. Por isso, cabe ressaltar que a ingenuidade é uma hipótese intelectual inaceitável. História para boi dormir.
Em O Castelo de Papel, ensaio biográfico sobre a vida conjugal da Princesa Isabel de Bragança e de Gastón d’Orléans (Conde D’Eu), confiante que bajulação pouca é bobagem, a historiadora Mary del Priore, ignorando a inteligência dos leitores, não mede esforços para propor uma versão romântica do casamento real.
Louis Philippe Marie Ferdinand Gaston d'Orléans et Saxe-Cobourg et Gotha, Conde D’Eu, neto do deposto rei de França, Louis Philipe I, e filho de Louis Charles Philippe Raphael d'Orléans, Duque de Nemours, parecia destinado a ser um zé-ninguém na aristocracia européia. A sorte mudou quando o Imperador Dom Pedro II iniciou as tratativas para encontrar esposos para as filhas mais velhas. Queria para a herdeira do Trono, Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon, alguém que fosse esquivo, calado, doméstico, inútil, sem opinião e sem temperamento forte. Para Leopoldina Teresa Francisca Carolina Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon, as exigências eram mais modestas. Depois que alguns candidatos declinaram da honra, Gastón e seu primo Ludwig August Maria Eudes von Sachsen-Coburg und Gotha (Gusty) embarcaram para os confins do mundo para conhecer a herdeira do trono e sua irmã. Ou melhor, o negócio nº 1 e o negócio nº 2 – forma “gentil” com que o Duque de Nemours tratava as princesas nas cartas que enviou ao filho. Chegaram ao Brasil no dia 02 de setembro de 1864.
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Família real brasileira |
Além dos horrores da viagem e da pobreza do castelo real, os rapazes tiveram uma surpresa bastante desagradável quando encontraram as futuras esposas: elas eram feias. Para os padrões da nobreza europeia, horríveis.
Os casais se formaram por imposição do Imperador. Aconselhado por Luisa Margarida de Barros Portugal, a Condessa de Barral (que foi, durante muitos anos, sua amante), preferiu Gastón como consorte real. Gusty reclamou um pouco, mas foi só para manter as aparências.
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Isabel e Gastón |
O casamento de Gastón e Isabel se realizou em 15 de outubro de 1864. E o resto da história se parece com roteiro de cinema hollywoodiano. Salvo a dificuldade de Isabel engravidar nos primeiros anos, a versão proposta por Mary del Priore sugere um casamento feliz, desses em que os interesses escusos se transformam em amor – ou algo parecido.
Mary del Priore, em diversos momentos de O Castelo de Papel, sem a mínima cerimônia, exclui questões essenciais para entender a história do Império brasileiro. Por exemplo, para não macular a tese da felicidade conjugal, aceita como provas incontestes de alguns episódios da vida privada do casal herdeiro do Império a correspondência ativa e passiva da Condessa de Barral e alguns jornais da época. Qualquer aluno de História sabe que esse tipo de documento não merece muito crédito. Interesses velados se confundem com objetivos escusos. A nobreza europeia e brasileira era pouco nobre quando a meta social estava escorada no manter as aparências.
Dissimulada, Mary del Priore preenche os espaços vazios com suposições e literatura. O exemplo mais significativo aparece na série de elogios que tece à participação de Gastón de Orléans na Guerra do Paraguai. Quem procurar por informações sobre a selvageria sangrenta que manchou a História Sul-Americana constatará que Julio José Chiavenatto discorda do heroísmo do Conde D’Eu. Em Genocídio Americano – a Guerra do Paraguai (livro que não consta das referencias bibliográficas), afirma que Gastón de Orléans foi um criminoso de guerra. Entre outras atrocidades, após substituir o Marquês (futuro Duque) de Caxias como comandante das tropas brasileiras, mandou incendiar o hospital de Peribebuy – todos os enfermos, velhos e crianças, morreram queimados. O hospital em chamas ficou cercado pelas tropas brasileiras que, cumprindo ordens desse louco príncipe louro, empurravam à ponta de baionetas para dentro das chamas os enfermos que milagrosamente tentavam sair da fogueira, relata Chiavenatto.
Nenhum comentário sobre esse episódio. Ou sobre outros que possam manchar a reputação do casal imperial. Quer dizer, quase isso. Enquanto a princesa Isabel recebe vários rótulos pejorativos (pouco preparada para suceder o Imperador, indecisa, carola) e há vários comentários sobre a decadência física e mental do Imperador, o "francês" é incensado por ser um diplomata e por assumir uma posição discreta diante das reviravoltas da política brasileira. Também recebe elogios por ser abolicionista. Enfim, um cavalheiro que sabe o seu lugar. Na saúde e na doença, na vida e na morte. Tanto que, com a queda do Império, acompanhou sua digníssima esposa ao exílio. Grande sacrifício familiar. Voltou para Europa, voltou para a família européia. Na versão ficcional de Mary Del Priore, deixou para trás um país selvagem que sempre o tratou mal.
Talvez o grande lapso dessa biografia seja a ausência de informações sobre o que aconteceu com a família real depois da Proclamação da República. São cerca de 30 anos resumidos em 20 páginas (Isabel morreu em 1921 e Gastón em 1922).
Enfim, O Castelo de Papel não convence como biografia. Nem como ficção.
Raul J.M. Arruda Filho, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”.
Todos os direitos autorais reservados ao autor.
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