"Matadouro 5" de
Kurt Vonnegut, ou encontrando comicidade na devastação da guerra
por Henry Alfred Bugalho
Já havia ouvido falar
muito sobre Kurt Vonnegut, inclusive cheguei a traduzir algumas dicas do autor
sobre como escrever contos.
No entanto, nunca havia me
interessado muito em ler seus romances, isto até fazer um curso online sobre a
manipulação da imagem e mencionarem o bombardeamento de Dresden, durante a
Segunda Grande Guerra, então surgiu o nome de Vonnegut e de seu principal
romance, "Matadouro 5".
Primeiro, precisamos entender
o que foi o bombardeio desta cidade alemã.
O ano era 1945 e já era
quase o final da guerra. A Alemanha havia sido bastante devastada pelos
bombardeios aliados, nenhuma grande cidade industrial havia sido poupada. A
oeste, as tropas americanas, francesas e britânicas haviam retomado muitos dos
territórios ocupados pelos nazistas e já haviam adentrado o território
germânico, enquanto a leste o Exército Vermelho iniciava a contra-ofensiva após
a malfadada companha alemã contra a URSS.
Dresden havia sido uma das
poucas grandes cidades alemãs que ainda permanecia intacta, principalmente
porque não possuía nenhum valor estratégico, não tinha indústria bélica
relevante e sua produção era voltada principalmente a bens de consumo. Quase na
fronteira com a antiga Tchecoslováquia, ela estava um pouco distante das
principais linhas de frente no oriente e no ocidente.
Todavia, os bombardeios
empreendidos entre 13 e 15 de fevereiro daquele ano pela Royal Air Force, um
mero ato de retaliação aos ataques da Luftwaffe contra o Reino Unido, provariam
ser o mais devastadores e com o maior número de mortes de toda a Guerra,
matando até mais civis do que as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki.
Algumas estimativas apontam que mais de 200 mil pessoas morreram durante aqueles
ataques, apesar de haver uma grande controvérsia sobre isto (algumas pesquisas
sugerem que estes números são exagerados e que o o total de vítimas não
passaria de 30 mil).
O fato é que este evento
passou despercebido por décadas, envolto numa nuvem de fumaça, sendo revisitado
no final dos anos 60 e começo dos 70, quando novas evidências vieram à tona,
entre elas, o polêmico romance de Vonnegut, que havia sido testemunha ocular do
bombardeio e de suas consequências.
Kurt Vonnegut havia
servido e lutado nas forças americanas no palco europeu e terminou como
prisioneiro de guerra, após o fracasso na Batalha das Ardenas, na Bélgica,
sendo conduzido a um matadouro em Dresden, que serviu de cárcere para os
soldados ianques, obrigados a realizarem trabalhos forçados.
Foi graças a este
matadouro subterrâneo (Schlachthof-fünf, ou matadouro 5, em alemão) que ele e
seus companheiros puderam sobreviver ao bombardeio, mas a memória das mortes e
da devastação jamais deixou de assombrar a mente de Vonnegut. Segundo ele
próprio, "quando voltei para casa da Segunda Guerra Mundial, há vinte e
três anos, pensei que seria fácil para eu escrever sobre a destruição de
Dresden, pois tudo que eu precisava fazer era relatar o que havia visto. E eu
pensava também que seria uma obra-prima ou, pelo menos, que me daria bastante
grana, pois o assunto era grande demais". (Slaughterhouse 5, p. 5)
Os EUA têm uma tradição de
romances de guerra, ou de romancistas combatentes. Um país que se envolveu em
quase todos os grandes conflitos do século XX e XXI, acaba inevitavelmente
criando uma cultura da guerra e do massacre. Afinal, não são todas as nações
que defendem o direto constitucional de porte de arma a seus cidadãos, nem se
consideram o bastião da "liberdade" e da "democracia".
Sem dúvida, o maior
símbolo deste espírito belicoso dos norte-americanos é Hemingway, que lutou na
Primeira Grande Guerra, relatando suas experiências em "Adeus às
Armas" e, posteriormente, cobriu como jornalista vários conflitos na
Europa, incluindo a Guerra Civil Espanhola e também a Segunda Guerra Mundial,
inclusive extrapolando o papel de mero observador e envolvendo-se em combate.
Não que Hemingway fosse um
apologista da guerra, pelo contrário, como ele mesmo afirmou, "escrevia-se
antigamente que era doce e justo morrer por seu país. Mas na guerra moderna não
há nada de doce ou justo em sua morte. Você morrerá como um cão sem bom motivo
algum." (Notes on the Next War: A Serious Topical Letter)
O que Vonnegut e Hemingway
têm em comum em suas experiências na frente de batalha, não poderiam ser mais
opostos em como cada um deles retratou este universo. Para Hemingway, a guerra
não é um assunto sobre o qual se faz piada. É um tema sério e brutal, e que
deve ser abordado com esta mesma seriedade e brutalidade.
Vonnegut, por outro lado,
até para lidar com o trauma do horror, recai numa comicidade tão natural e
extrema, que nem nos damos tanta conta de que aquilo que ele relata é, de fato,
uma abominação inconcebível. É como um louco refletindo sobre seu mundo devastado.
Um louco criado pela própria insanidade da guerra.
E para Vonnegut não basta
apenas uma abordagem pouco convencional, a própria narração precisa ser um
mergulho nesta sandice, o próprio protagonista também é, em grande parte, um
maluco incompreendido e com profundas cicatrizes na alma.
Não espere uma narrativa
linear de "Matadouro 5", nem grandes surpresas ou reviravoltas
inesperadas, apesar da escrita ligeira, limpa e incisiva. Logo no primeiro
capítulo, o narrador já nos diz sobre o que será o livro e como ele acabará. É
sobre o bombardeio de Dresden, e isto já sabíamos, e acabará em suas ruínas.
Vonnegut faz questão de
antecipar os eventos, de saltar como um macaco de galho em galho, intercalando
futuro, presente e passado, infância, idade adulta e até a morte do personagem,
vagando de Dresden para os EUA, para um planeta em outra galáxia, pois, como
lhe ensinaram os extraterrestres no livro (sim, os ETs também estão
presentes!), "todos os momentos, passado, presente e futuro sempre
existiram, sempre existirão." (Slaughterhouse 5, p. 16)
Uma afirmação bastante
einsteniana, o tempo não como uma sucessão de eventos, mas num continuum, onde
todos os instantes estão lançados no plano do espaço-tempo, a quarta dimensão,
que podemos apenas apreender, jamais vivenciá-la.
Quando se elimina a relação
de causa-efeito, como ocorre nas experiências de viagem no tempo de Billy,
muito da angústia sobre o futuro ou sobre os erros da passado deixam de ter
relevância. Tudo tanto faz.
Neste sentido, pouco
importa os bombardeios de Dresden, as vidas particulares de cada um de nós, ou
até o fim do Universo. Tanto faz.
Publicado em 1969,
"Matadouro 5" foi recebido com agressividade nos EUA, sendo banido de
escolas públicas por causa de sua linguagem obscena e de sua irreverência,
ainda hoje sendo alvo de ataques de pais e professores. Alguns críticos também
preferem menosprezá-la, considerando-a uma obra conformista e quietista, que
considera o homem desprovido de livre-arbítrio, incapaz de mudar ou melhorar
sua realidade.
Quando Billy tentar
descobrir uma solução para as guerras na Terra, os ETs respondem: "Em
outras épocas, tivemos guerras tão horríveis quanto as que você viu ou sobre as
quais leu. Não há nada que possamos fazer sobre elas, então simplesmente não
olhamos para elas. Nós as ignoramos." (Slaughterhouse 5, p. 55)
Uma lição de conformismo?
Talvez, mas a própria existência deste livro é uma prova que há dores tão
profundas que precisam vir à luz, revelando-se aos outros quão graves elas são,
mesmo que surjam como um constrangedor palhaço em frangalhos, ainda que cômico
mesmo assim.
E nada há nada de
conformista neste esforço. Não há nada mais visceral do que revirar e reviver
os próprios sofrimentos.
Matéria publica na Revista SAMIZDAT
Henry Alfred Bugalho- Editor da Revista SAMIZDAT, Curitibano, formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em Estética. Especialista em Literatura e História. Autor dos romances “O Canto do Peregrino”, "O Covil dos Inocentes", "O Rei dos Judeus", da novela "O Homem Pós-Histórico", e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca” e do "Nova York, Bairro a Bairro", cidade na qual morou por 4 anos, e do "Curso de Introdução à Fotografia do Cala a Boca e Clica!".
Após uma temporada de um ano e meio em Buenos Aires e outra de oito
meses na Itália, está baseado, atualmente, em Madri, com sua esposa
Denise e Bia, sua cachorrinha.
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