Paul
McCartney
“Up
and Coming” tour: McCartney, o compositor popular em sua acepção alta
Essas esparsas anotações têm como objeto alguns aspectos da
obra do compositor Paul McCartney. Seu trabalho representa uma oportunidade
para trazer à baila nossas ficções estéticas sobre música, poesia e letra. O
interessante ambiente sociocultural onde Paul se forma, se não é de todo
suficiente para explicar a eficiência perdurável de seu fazer artístico, também
não pode ser recusado como um dado irrelevante. Constitui um de seus traços
distintivos. Em outras palavras, o beatle se insere na experiência de época da
juvenília revoltada dos anos 1960 na Grã-Bretanha, que é produto, em certa
medida, do boom econômico do pós-guerra e do ensino gratuito de alto nível.
Refiro-me aqui à instituição das escolas de belas-artes que,
segundo McCartney em sua autobiografia autorizada, representavam a “falha no
sistema educacional britânico, um espaço onde tanto a juventude de classe média
quanto a de classe baixa podiam negar as consequências do passado e do futuro e
viver, não importa quão fugazmente, uma fantasia de liberdade cultural”.
Não custa lembrar que John Lennon da mesma forma estudou na
escola de belas-artes de Liverpool. De resto, por estas instituições de ensino
também passaram, entre outros, Eric Clapton, David Bowie, Pete Townshend, todo
o Pink Floyd, Keith Richards, Ron Wood e Jeff Beck. Essas escolas de
belas-artes não revelaram “artistas” no sentido clássico ou retrô que
costumamos associar ao termo, no entanto, de suas salas saíram excelentes
criadores do mundo pop como estilistas de moda e dúzias de músicos do
rock’n’roll.
A cultura popular, notadamente a música – aqui hipostasiada
no refinamento dos Beatles –, indica, à época, o relativo fim da hegemonia das
camadas aristocráticas como as detentoras do saber, do fazer e do julgar
referentes aos bens simbólicos ou imateriais ofertados. No começo, os Beatles
eram brancos de alma branca. Músicos negros tocavam suas próprias composições:
os intérpretes que se entendessem depois. Músicos brancos interpretavam essas
composições tornando-as admissíveis aos seus iguais.
Por fora, os Beatles mimetizavam o visual dos ídolos brancos
do rock cinematográfico e, em troca, cumpriam o destino vitorioso que o
ambiente lhes exigia. Mas sua música (o lado de dentro), a par da forte
invisibilidade a que eram submetidos os precursores e mestres dos rapazes de
Liverpool, era visivelmente negra. Depois, os Beatles viraram brancos de alma
negra porque descobriram que também podiam tocar as canções que eles mesmos
compunham. E tudo voltou ao seu lugar. Os vocais dos Beatles não seriam
possíveis sem o repertório do grupo black The Coasters.
A música, como as demais formas artísticas e culturais,
jamais cria raízes, se consolida, apenas em uma limitada série de eventos. Nem
lugar-comum nem estabilidade canônica. O trabalho de Paul se prende à
diversidade. Digamos que esta seja a única regra ou o parti pris sobre o qual
deva se assentar uma carreira bem-sucedida do compositor popular. Paul
McCartney, entre outras coisas, é filho da tradição do music hall e do
vaudeville. Em termos práticos, Paul tinha mais recursos do que Lennon. Por
exemplo, Paul tocava mais instrumentos (devido a convivência paterna) do que o
seu parceiro.
Nos domínios do bom entretenimento de matriz pop, Paul
representa uma espécie de polígrafo, pois não só se interessa pelas artes, moda
e cinema, como também interfere como criador e produtor; trabalhou, além disso,
com música clássica, eletrônica e trilhas sonoras.
Mas parte desse traço deve ser creditada também à Apple, que
deu ao compositor, depois dos muitos erros de percurso no gerenciamento de seus
negócios, o conhecimento e o desejo necessários para este tipo de trabalho.
Naturalmente, êmulos de toda espécie continuam a pisar o caminho pavimentado
pelo líder do grupo Wings. Paul encarna o compositor popular em sua mais alta
acepção. Mas o que definiria essa figura do compositor popular? Melhor que
tentar uma definição, talvez uma despretensiosa listagem fosse mais eloquente.
Pensemos, por exemplo, em nomes como Luiz Gonzaga, Cartola, Zé Kety, Roberto e
Erasmo, Jorge Ben, Lupicínio Rodrigues, Dorival Caymmi, Roy Orbison, Bob Dylan.
Os números faraônicos, o mais das vezes, também estão ao lado dessa categoria
de artistas.
Paul, o Alfred Hitchcock
O Guinness corteja Paul McCartney e o declara o compositor
de maior sucesso da história da música pop mundial. Com a morte de Michael
Jackson, Paul herda o cetro de rei do pop. McCartney teve 29 composições de sua
autoria no primeiro lugar das paradas de sucesso norte-americanas, 20 das quais
junto com os Beatles e o restante em carreira solo ou com seu grupo Wings.
Canções que fizeram e fazem a vontade dos fãs.
Produzir canções de premissas reduzidas. A ideia simples
basta, pois é resultado da prática de composição. No entanto, o compositor
popular se especializa na realização de peças requintadas sem que nisso
denuncie o menor esforço. Se a música fosse a arte de Machado de Assis, ele
seria um sambista: o mulato jamais impôs uma disjunção entre o experimental e o
comunicativo.
O compositor popular como mágico prestidigitador que tira
“do nada”, isto é, do MacGuffin de uma cartola um estratagema de simulação para
que a peça se realize. Hitchcock diz que “MacGuffin” é um truque/gimmick;
aquilo que é muito importante para os personagens do filme, mas sem nenhuma
importância para o diretor, ou seja, o narrador. Uma anedota que exemplifica o
recurso do MacGuffin: um sujeito diz ao outro: “O que é esse pacote que você
leva debaixo do braço?”. O outro: “Ah, isso! É um MacGuffin”. Então, o
primeiro: “O que é, afinal, um MacGuffin?”. O sujeito: “É um aparelho para
pegar leões nas montanhas Adirondak”. O primeiro: “Mas não há leões em
Adirondak”. E o outro conclui: “Nesse caso, não é um MacGuffin”.
Não por acaso relaciono Paul McCartney a este outro imenso
criador inglês, Alfred Hitchcock, que também “fazia a vontade dos fãs”. Na
gramática fílmica hitchcockiana o espectador sabe desde o início quem é, de
fato, o culpado, ou a quem, injustamente, é imputada a culpa. Hitchcock é a
tradução, para o cinema, desses lances construtivos que, na esfera musical,
distinguem o compositor popular. Hitch sempre foi um homem inteligente,
habituou-se desde muito cedo a considerar todos os aspectos de feitura dos
filmes.
O diretor de Rear window (1954) se caracteriza por fazer
coincidir suas predileções com as do público. François Truffaut diz que existem
duas espécies de diretores, “os que levam o público em consideração ao conceber
e posteriormente realizar seus filmes e aqueles que não se importam com isso.
Para os primeiros, o cinema é a arte do espetáculo e para os
segundos, uma aventura individual”. Denunciado por uns e louvado por outros por
ser um dos cineastas mais comerciais do mundo, o que importa, segundo Truffaut,
em fim de contas, é que sua enorme exigência em relação a si mesmo e à sua arte
fazem igualmente dele um grande diretor. Sem muitas mediações transponho as
observações do diretor francês, porque as acho válidas inclusive enquanto
descrições formais, tanto para a categoria do compositor popular como para o
caso específico de Paul McCartney.
A pecha de comercial também se liga ao nome de Paul. Na fase
pós-Beatles o compositor se queixava de que o contrato da Apple celebrado entre
os quatro obrigava que mesmo um trabalho solo rendesse percentuais aos outros
integrantes. Dizem que Paul era o mais prejudicado nestas condições, pois
compunha as músicas mais comerciais do grupo. Assim, Lennon, George e Ringo não
estariam interessados, supostamente, em mudar os termos do contrato, já que ele
os beneficiava, pois os sucessos de Paul, mesmo em sua carreira solo, fariam
com que os demais auferissem ainda lucros significativos.
Paul: cena de conversação
Mas, saltando essa e outras controvérsias, o que me
interessa aqui é dividir com o leitor umas poucas interpretações que comecei a
fazer a respeito de algumas canções de Paul McCartney. Ao desejo de linguagem
do artista, todo fruidor deve responder com o seu desejo de interpretação.
Algumas dessas leituras nasceram da experiência de “tirar” as músicas do
compositor. Ou seja, durante essas audições, e enquanto as executava, pude
olhar e ouvir com mais atenção as suas sutilezas, tanto melódicas como
poéticas. O procedimento foi o de repetir para aprender.
A metalinguagem da canção popular – quando o estilo chama
atenção para si mesmo, ou o meio de expressão torna-se o grande atrativo da
própria obra, situações observadas na mais ligeira prospecção de alguns
exemplos do imenso cancioneiro humano – desmente a concepção de que o uso da
metalinguagem seria uma prerrogativa viciosa e restrita à erudição de cunho
aristocrático. Assim como acontece, por exemplo, na arte dos sambistas de boa
cepa, a nota metalinguística comparece na obra de Paul McCartney, mas de
maneira antes cômico-lírica que exibicionista.
Em “Your mother should know”, a metalinguagem é reiterada na
piscadela de olhos, no convite ao ouvinte simpático à coesão de sons e
sentidos, e assim os Beatles cantam apelando ao não verbal: Lift up your hearts
and sing me a song. E o convite, entre didático e interativo, comparece mais
adiante na simpleza anagramática desse sing it again, senha para que a plateia
virtual retome a segunda e derradeira parte da canção a partir do seu desenho
puramente melódico, por meio de uma variante do prosaico MacGuffin “lá-lá-lá”,
secundado pela repetição em eco do título-estribilho Your mother should know,
uma vez pela voz principal e outra pelo vocal em acorde, ou seja:
Da, da, da, da, da, da, da, da, da, da
Da, da, da, da, da, da, da, da, da, da, da.
Though she
was born a long, long time ago,
Your mother
should know. (Your mother should…)
Your mother
should know. (Yeah…)
Your mother
should know. (Your mother should…)
Your mother
should know. (Yeah…)
Your mother
should know. (Your mother should…)
Your mother
should know. (Yeah…)
“Martha my dear” é uma canção que, embora seja assinada por
Lennon e McCartney, sempre gosto de ouvi-la como sendo de autoria apenas de
Paul, porque é o tipo de composição que o singulariza em relação ao seu duplo.
Em sua introdução, o piano reforça a emotividade nostálgica (Remember me/
Martha my love/ don’t forget me/ Martha my dear).
Há também um tanto de cinema mudo e de vaudeville na
musicalidade desses primeiros compassos. Martha, essa “silly girl”, lembra sua
“prima” Alice nos levando pela mão através de um quadro campestre. É nessa
altura que uma referência adjacente perturba (com todo o respeito) minha
fruição. Quando Paul canta: “Though I spend my days in conversation, please”,
não consigo deixar de ouvir no fragmento “… conversation, please…” o eco
intertextual de conversation piece. Esclareço. Conversation piece (cena de
conversação) foi um gênero de pintura muito popular na Inglaterra do século 18
em cujos retratos se representavam cenas de famílias em situações informais nos
seus aposentos, salas e pátios internos.
Em 1974, Luchino Visconti realizou o filme baseado neste
tipo de pintura, o título alternativo em italiano era Gruppo de famiglia in un
interno. “Martha my dear” é a trilha sonora possível para uma forma renovada de
conversation piece. O arranjo de cordas e sopros (o fraseado de trompa ensolara
a imagem) de George Martin inunda os aposentos em que Martha, na ausência de
Alice, toma chá com o Chapeleiro Louco.
Paul: palavras contam menos do que acordes
No álbum talvez mais experimental dos Beatles, Paul grava a
despretensiosa “Mother Nature’s son”. Transcrevo minhas anotações. Os
inteligentes jogos fônicos da letra: a assonância born/poor; as sibilantes
aliterativas a partir do substantivo son que reaparecem em “sitting singing
songs”, reiterando valências rímicas e rítmicas requeridas pela estrutura
melódica e harmônica. Sit
beside a mountain stream, see her waters rise/ Listen to the pretty sound of
music as she flies. Por detrás, ainda, do qualificativo pretty, em um
lance de hiperinterpretação, convido o leitor a ler poetry, afinal de contas,
para conjurarmos esta palavra só precisamos acrescentar àquela a vogal /o/.
Sibilante, serpejante, mimetização do rio que vemos correr
no locus amoenus da cena projetada em vívida fanopeia. Em contrapelo temos o
“doo doo doo…”, que sobrevoa a eloquente orquestração de metais de George
Martin. Porque letra de música não é bem poesia. O grande compositor popular é
como que arrastado, por um imperativo de “primeiridade” (C. S. Peirce), a
transformar mesmo o logos que preside o verbal em ícone, isto é, quando ele não
se serve em suas letras de eventuais semas fônicos como os “doo doo doo…”,
acaba transferindo colorações não verbais a sintagmas verbais (signatum). Exemplos: “E gritava: AEIOU IPSILONE”
(Jackson do Pandeiro); “Bumbum baticumbum brugurundum/ O nosso samba minha
gente é isso aí” (Aluísio Machado) etc. A esse respeito, uma recordação
imprecisa.
Não me lembro em que prólogo a um dos seus livros escreve
Jorge Luis Borges que toda leitura implica uma colaboração. O leitor deve
suprir as ausências constitutivas do texto literário – inventando as suas
próprias respostas –, mesmo porque são elas, as lacunas, que tornam possível o
prazer poético. Borges, comparando o seu escrito a uma milonga executada com
languidez, diz: “La mano se demora en las cuerdas y las palabras cuentan menos
que los acordes”.
Em suma, desbordando das interdições verbais, as letras das
grandes canções se conformam de maneira a sugerir certos sentimentos ou
assuntos mais pelas bases musicais em que se assentam e dialogam do que pelo
sentido lexical de onde se originam e com que são admitidas pelo senso comum. O
compositor popular revela nestes momentos, portanto, sua intrínseca condição de
criador icônico, não verbal. Finalmente, se o interessado quer saber algo sobre
música e letra, poesia e canção popular, que as ouça sem excessivas mediações. O contato direto com a coisa.
Ouçamo-la.
Born a poor
young country boy, Mother Nature’s son
All day
long I’m sitting singing songs for everyone
Sit beside
a mountain stream, see her waters rise
Listen to
the pretty sound of music as she flies
Doo doo doo
doo doo doo doo doo doo doo doo
Doo doo doo
doo doo doo doo doo doo
Doo doo doo
Find me in
my field of grass, Mother Nature’s son
Swaying
daises sing a lazy song beneath the sun
Doo doo doo
doo doo doo doo doo doo doo doo
Doo doo doo
doo doo doo doo doo doo
Doo doo doo
doo doo doo
Yeah yeah
yeah
Mm mm mm mm
mm mm mm
Mm mm mm,
ooh ooh ooh
Mm mm mm mm
mm mm mm
Mm mm mm
mm, wah wah wah
Wah, Mother Nature’s son
Ronald Augusto
nasceu em 1961 no estado do Rio Grande do Sul. O escritor atua em
inúmeras áreas: é músico, letrista, ensaísta e possui ainda um trabalho
significativo no âmbito da literatura. Como poeta alcançou
expressividade no cenário nacional e até mesmo mundial, de tal forma que
suas produções foram publicados em revistas literárias, bem como em
antologias, dentre elas destacamos: A razão da Chama, organizada por
Oswaldo de Camargo (1986), a revista americana Callaloo: African
Brasilian Literature: a special issue EUA (1995), a revista alemã
Dichtungsring Zeitschrift für Literatur, e outras.
Nenhum comentário
Postar um comentário