Aos 97
anos, Manoel de Barros mantém rotina de trabalho criativo e prepara novo livro
de poemas
Ele
confessa admiração por Guimarães Rosa e Padre Vieira e diz que o Brasil já tem
poetas demais
Bianca
Magela Melo
Em qualquer
parte e para todos que se aproximam ele é “o poeta”. Manoel de Barros responde
com um sorriso espontâneo e quando fala ergue devagar as mãos e firma no
interlocutor os olhos pretos pequenos sob a lente dos óculos. Nosso olhar
pega-o à vontade em sua casa em Campo Grande (MS), de blusa branca de botão e
calça azul de tecido leve. É um homem bem cuidado e recende, mesmo na
simplicidade de suas escolhas, o tratamento carinhoso de uma esposa dedicada e
das companhias que o cercam. A esposa é Stella, mineira de 91 anos, casada com
Manoel há 65. O outro remédio para a vivacidade que se vê ao olhar para esse
senhor de 97 anos é seu namoro antigo com a poesia. O relacionamento é mantido
com disciplina: todas as suas manhãs são dedicadas ao ofício.
Fica no
segundo andar de sua casa o espaço de fazer poesia ou lugar de ser inútil, como
brinca Manoel. O pequeno escritório reúne os tesouros do poeta: os livros
preferidos, dicionários, sua escrivaninha, dezenas de pequenos cadernos com
anotações, tocos de lápis – desde que alguns dedos da mão esquerda ficaram
“esquecidos”, ele só escreve a lápis com a mão direita; não usa mais a máquina
de datilografia. É para esse cômodo que Manoel vai todas as manhãs depois de se
levantar e tomar café. O namoro pede que ele fique lá entre as 6h e as 11h,
lendo, relendo, escrevendo, ouvindo música clássica, pensando, contemplando.
Em março,
circularam boatos de que Manoel de Barros seria um dos brasileiros indicados ao
Nobel de Literatura. A academia sueca, responsável pela escolha, não divulga os
nomes dos concorrentes antes da lista final. Manoel tem sido condecorado com
muitos prêmios nos últimos anos. Ao longo da vida, ele já havia recebido alguns
expressivos, como o Jabuti e o Nestlé de Poesia. Em 2012, o volume com sua
Poesia completa foi agraciado com o Prêmio Português de Literatura Casa de
América Latina/Banif e Escritos em verbal de ave, seu último livro, foi o
vencedor do prêmio da Academia Brasileira de Letras na categoria poesia.
É um
momento de reconhecimento de sua poesia ancorada na infância, criadora de
imagens, zombadora do sério, primitiva, para usar um adjetivo que ele mesmo,
que não gosta de adjetivos, emprega. As notícias sobre a reverência à sua obra
chegam ao poeta quase sempre por meio das muitas correspondências que o
carteiro entrega na sua porta. Ele, no entanto, concentra sua energia no
trabalho em seu cômodo de fazer poesia, pinçando na imaginação pistas sobre o
sentir e o não sentido do mundo. Apesar de ter mobilidade e a mente ativa,
praticamente não sai mais de casa nem para ir à sua fazenda, no Pantanal. É
assim desde 2007, quando o filho mais novo, João, morreu em um desastre de
avião. A visão e a audição lentamente vão sendo modificadas, lançando o poeta
mais ainda para o seu mundo. É Martha, a filha artista plástica e ilustradora
de parte de sua obra, quem vai a algumas cerimônias representando-o.
Vagabundagem
profissional
Sobre seu
ofício, Manoel escreveu certa vez: “Nasci para administrar o à toa/ o em vão/ o
inútil.” À poesia, “a mais verdadeira maneira séria de não dizer nada”,
importariam as coisas que não levam a nenhum lugar. O poeta que enaltece a
“vagabundagem profissional” e o estar à toa tem para si um sentido especial de
ócio. Estar consigo, com sua imaginação, suas leituras e prazeres
solitariamente é o ócio de Manoel. Para sorte dos seus apreciadores, sua
vagabundagem gera poemas em ritmo e vigor. A fase iniciada em 2000 é a mais
produtiva editorialmente. Manoel lançou, desde então, 11 livros de um total de
25 ao longo de quase 80 anos de escrita lírica.
Seu editor
atual, Pascoal Soto, da Editora Leya, espera um novo livro sem, contudo, ter
certeza e sem cobrar qualquer prazo. “Nunca sei quando vai chegar um livro
dele, mas estou sentindo no ar que vem um novo livro nos próximos dias”, diz em
tom misterioso e afirmando possuir um bom sexto sentido. O mais recente do
poeta, Escritos em verbal de ave (2011) homenageou Bernardo, o “outro” mais
presente na poesia de Manoel. Alter ego, cupincha, aliado para saltos e
cambalhotas com a língua e com a lógica, Bernardo é também o nome de um peão da
fazenda de Manoel no Pantanal. O livro ousa no formato dobradura: todos os pequenos
versos estão em uma mesma folha na cor laranja dobrada. E no conteúdo: Bernardo
é quem assina os versos. Antes, um poema-apresentação anuncia que são escritos
póstumos: “Deixamos Bernardo de manhã/ em sua sepultura/ De tarde o deserto já
estava em nós”.
Para
Manoel, a poesia esteve presente desde muito cedo no olhar do menino para as
pessoas e coisas do seu entorno. Segundo um de seus livros, o primeiro poema
teria sido feito aos 13 anos: “Aquele morro bem que entorta a bunda da
paisagem”, disse ao olhar, do Pantanal, onde morou, para os longes da Bolívia.
Foi a primeira “iluminura” que fez a mãe dizer: “Agora você vai ter que assumir
as suas irresponsabilidades”. Compreendendo o peso das palavras da mãe, ele diz
ter assumido, entrando “no mundo das imagens”.
Na fase de
ginasial, foi estudar em colégio interno no Rio de Janeiro sob a custódia de
padres maristas, que o apresentaram à literatura quatrocentista portuguesa. Ao
sair do internato, passou a viver em uma pensão a fim de se preparar para o vestibular
de direito. Nessa época, ele reuniu em uma encadernação manual intitulada Nossa
Senhora da minha escuridão poemas do seu primeiro livro, do qual só ficou uma
história curiosa: suspeitando de que Manoel pudesse estar disseminando material
comunista, a polícia invadiu seu quarto e apreendeu o original.
O primeiro
livro publicado foi Poemas concebidos sem pecado, em 1937, prosa poética
iniciada com a história do menino Cabeludinho, que deixou a família para
estudar no Rio de Janeiro e voltou ateu. Manoel tinha 21 anos e a certeza do
que queria fazer. Muitas décadas correram até chegar um reconhecimento maior, o
que possivelmente explica o volume de produção grande nos últimos anos. Manoel
já era um senhor de mais de 70 anos quando Millôr Fernandes descobriu seus
poemas e escreveu uma crítica fazendo estardalhaço sobre certo poeta “de
verdade” que o Brasil precisava conhecer.
Manoel, que
nasceu em Cuiabá e foi menino para o Pantanal, viveu quase 40 anos no Rio de
Janeiro. De lá, migrou uma vez mais para o Pantanal, para suceder ao pai na
administração da fazenda de gado da família. Dez anos à frente da fazenda e o
poeta quis mudar de novo. Foi com a mulher e os três filhos para Campo Grande,
sua atual morada. Foi ali que escreveu quase todos os seus livros. As
“iluminuras” do poeta maduro tomaram forma no escritório doméstico, de onde o
sexto sentido do seu editor espera um conjunto de escritos que pode ser a mais
nova demonstração do vigor impressionante de Manoel de Barros.
Bianca
Magela Melo é jornalista.
Lampejos de
Manoel
Paixão
literária
“Sou
fanático pelo padre Antônio Vieira. Li todos os livros dele e estou relendo
agora. Não sei gramática. Aprendi a escrever lendo Vieira. Porque ele escrevia
numa harmonia total. Tenho hoje também grande admiração pelo Guimarães Rosa,
que modificou a língua portuguesa do ponto de vista linguístico. A minha
sedução pelo Vieira é a mesma que tenho pelo Guimarães Rosa. Eles são
transformadores da língua portuguesa, são criadores.”
Valores
para viver
“Eu sou um
ser humano cristão. Já fui comunista. Amar o próximo como a si mesmo é o
negócio mais importante pra mim. Uma coisa que acaba com o comunismo é amar o
próximo. O ser humano nunca vai chegar a amar o próximo como a si mesmo. Ele
consegue ser a vida inteira para ganhar dinheiro, para roubar do outro, para
tirar do outro. Você acha que Stalin poderia fazer alguém puro, um São
Francisco de Assis? Eu acho que amar o próximo como a si mesmo é a chave do ser
humano.”
Livro
roubado
“Quando
escrevi meu primeiro livro, a polícia roubou. Fui preso como membro do regime
comunista. Os policiais apareceram na pensão onde eu morava, começaram a
vasculhar e descobriram esse livro, que ainda era um manuscrito. A dona da
pensão, que era uma índia, falou ‘esse menino aí não é comunista, não’. Eles
deixaram o assunto, mas levaram o livro. Eu sempre digo que a única ação boa da
polícia foi essa, porque o livro era ruim.”
Poeta e
moscas
“Levanto,
tomo meu chá, essas coisas e vou para o escritório. Desço de lá às 11h, aí vou
tomar um aperitivo. Tem um uísque bom aí. Recebo sempre pinga de Minas, mas
agora eu dispenso. O médico falou: ‘Pinga te faz mal, uísque é melhor’. Tomo
aperitivo, vou almoçar, vou deitar um pouco. De tarde, ler jornal, coisas que
chegam pra mim. Todo dia vem correspondência, vem livro novo. O Brasil tem mais
poeta do que mosca.”
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