Mia Couto define-se como
biólogo a tempo inteiro e escritor nos intervalos. É casado e tem três filhos.
Vive em Moçambique, onde nasceu. Vem a Portugal duas ou três vezes por ano. Foi
uma sorte tê-lo encontrado disponível numa das vezes.
A história desta entrevista,
ou estória, como ele gosta de dizer e escrever, começa num encontro mais ou
menos acidental dois dias antes da manhã em que supostamente conversaríamos. No
dia do meio, que começou demasiado cedo e terminou demasiado tarde,
acompanhei-o num périplo de escritor de sucesso, como pomposamente lhe chamei.
Sucesso quer dizer milhares e milhares de pessoas que lêem os seus livros,
plateias rendidas, conversas inesquecíveis, filas intermináveis de autógrafos.
Por fim, sentado num estúdio improvisado, agarrou-se a uma chávena de chá.
Seriam duas da manhã. Enquanto o fotógrafo lhe roubava restos da alma a
desvanecer-se, caracterizou cientificamente flores surripiadas a uma
das conferências.
Serve a história para
dizer que, quando finalmente nos sentámos para a entrevista, já sabia da sua
extraordinária timidez, do seu amor violento a Moçambique. E estava também
contagiada pela mística de África. Pareceu-me, por isso, demasiado suspeitoso
que na mesa nua onde se depositou a conversa estivesse, sozinha, uma moeda de
cinco escudos.
Como veio aqui parar esta
moeda de cinco escudos?
É um esquecimento. Se
fosse de mais valor não tinha esquecimento.
Foi você que a
esqueceu aqui?
Quer saber se é uma coisa
supersticiosa? Não é. Embora tenha as minhas superstições, não estão ligadas
com moedas. É uma coisa que bebi do meu lugar, de Moçambique. O dinheiro não
está ligado nunca às coisas do espírito. Os antepassados, que organizam o mundo
dos vivos, nunca aceitam que a relação com eles passe pelo dinheiro.
É a antítese do mundo real
onde tudo é comprável e as pessoas têm sempre um preço. Mesmo em Moçambique,
apesar da importância que se atribui aos espíritos e à relação com
os antepassados.
O tempo dos antepassados
era um tempo em que não existia este dinheiro, como moeda de troca. Usava-se
comida e, sobretudo, bebida. A bebida está ligada aos rituais, sempre. Em todas
as grandes festas é um passo para a alienação e para a desordem colectiva. Há
algumas em que os homens podem fazer amor com as mulheres que quiserem
e vice-versa.
Você bebe?
Bebo meio copo e caio
fulminado! Através do álcool instituo a desordem só em mim próprio.
É uma coisa que
lhe agrada?
Não me agrada nem
desagrada. Tenho um corpo chato que não me deixa portar mal. Põe sempre
policiamentos e tem uns vigilantes à entrada. Sinto-me mesmo mal com a bebida.
Por outro lado, tenho umas coisas interiores, uns truques, umas hormonas, que
me fazem ter acesso a essa viagem que se tem quando se está embriagado. Posso
embriagar-me sem beber.
Sem recurso a
subterfúgios, sejam eles quais forem?
Os meus amigos dizem que
caí no caldeirão.
Como o Obelix?
Sim. Todos nós temos
essa possibilidade.
Os livros podem ser uma
maneira, muito correcta e aceitável, de se evadir de si. A bebida implica,
normalmente, uma transgressão.
Fico muito atrapalhado
quando as pessoas se dirigem a mim e comentam os livros como se tivesse feito
aquilo num acto de consciência. Sou uma outra pessoa quando se dirigem a mim.
Aquilo corresponde a um momento quase de transe, em que viajei para outra parte
de mim.
Sente necessidade de
explicar isso?
Sinto. Não acho que seja
uma romantização do acto de criação.
O que despoleta o
processo criativo?
Há muitas situações:
pessoas que encontro, viagens que faço.
Já respondi. Não respondi
à sua pergunta?
É suposto isto ser um
rígido exercício de pergunta-resposta?
Daqui a bocado está a
fazer-me psicanálise. Se escorrego, começo a contar a história da minha vida e
dos meus traumas.
Qual é o problema?
Não estou muito preparado
para desatar a fazer uma espécie de catarse dos meus traumas da
infância, escondidos.
Já houve um processo
catártico para chegar a essa consciência.
Tenho consciência que um
dos temas a que recorro é a chamada identidade sexual. Está muito presente nos
meus textos. Quando os leio, longe do acto de criação, entendo que usei o texto
para resolver isso dentro de mim de uma maneira tranquila e serena.
Antes de mais, acredita
na psicanálise?
Tanto quanto acredito numa
relação entre duas pessoas que passe pela feitiçaria ou pela religião. O que
está em causa, em cada um dos casos, é a crença que aquele outro tem poderes
terapêuticos que te fazem chegar além de ti próprio, para te explicar de uma
outra maneira. É o poder que depositamos no relacionamento que faz essa
relação verdadeira.
Então, o psicanalista é
uma pessoa treinada para desenvolver uma determinada relação com o outro como
pode ser uma feiticeira ou um padre?
Um amigo. Acho que se
podem equivaler.
Tem um melhor amigo?
Tenho vários.
O que é que
eles fazem?
São diversos. Quase todos
têm um traço comum: são pessoas irrequietas, têm uma pequena dose de loucura de
maneira que não sejam completamente loucos. Vão de camponeses até jornalistas,
escritores. A vida em Moçambique teve momentos tão duros e tão extremos que
aprendi a revalorizar a amizade com critérios que não eram os meus.
Os seus amigos são
todos homens?
A maior parte
sim. Porquê?
Porquê pergunto eu.
Também me interrogo. Se
calhar porque vivemos num mundo em que é complicado um homem ter grandes
amigas, sem que isso passe por mil explicações e não se converta
noutra coisa.
Há uma vulnerabilidade em
si que as mulheres adoram porque, supostamente, lhes desperta o instinto
maternal. Sente-se muito alvo da cobiça feminina?
Um amigo meu diz que
organizo esta aparente fragilidade como um truque de sedução, como coisa
apelativa. É provável que aconteça, não nego. Por outro lado, cresci no meio
desta tribo, que se chama «Os Homens», e desenvolvi em relação a
características ditas masculinas uma espécie de rejeição. Uma certa petulância,
uma auto-suficiência, um sentido prático na relação com o dinheiro. Gosto muito
de ser homem. Mas para ser homem, não preciso de ser aquilo.
No Ocidente os valores da
masculinidade e da feminilidade estão cada vez mais diluídos. Em Moçambique a
masculinidade é muito exaltada. De onde vem essa resistência?
Vem, por exemplo, dos
rituais de iniciação masculinos. Mudaram muito, eu sei. No meu tempo implicavam
uma certa violentação.
Para os homens ou para
as mulheres?
Era uma violentação no
sentido duplo. Era como se desligava as questões sexuais das afectivas, uma
coisa que não conseguia aceitar. Pertenço à geração que se iniciava com as
prostitutas. [risos] Corte, corte!
Corto esta frase?
Não. Não me pergunte mais
sobre isto. Há uma coisa curiosa que queria dizer: na tradição moçambicana, a
que não pertenço senão parcialmente, os homens, dentro dos rituais dessa
masculinidade, podem passar por relações homossexuais. Recordo uma coisa que me
chocou na altura, tinha 14 ou 15 anos; um amigo meu disse: «Esta noite vou
dormir com um homem porque isso me dá força». Ele não era de todo homossexual
nem se iria nunca assumir como homossexual.
Qual era o papel que ele
ia assumir, o do activo ou o do passivo?
Não sei. Os mineiros, e
quase todos os homens do sul trabalharam num período das suas vidas nas minas
da África do Sul, têm um ritual em que se casam. Cada um tem a sua mulher, que
é um homem, e vivem maritalmente durante o período em que estão nas minas. Mantêm
as suas mulheres, voltam para as suas mulheres e não se convertem
em homossexuais.
Num dos seus livros,
«Terra Sonâmbula», há um velho que masturba um rapaz que tinha adoptado. É uma
situação que suscita múltiplas leituras. Fica mais ou menos evidente o incesto,
que é recorrente noutros livros; há a iniciação que pode comportar a
homossexualidade mas que não implica que ela seja continuada; e há uma mística
que envolve o acto e o torna mais bonito, sem a secura com que uma relação
deste tipo seria apresentada.
Sobre o tom encantatório,
é essa a tarefa da literatura: pegar nas coisas e tentá-las encantar. É uma
cena simbólica que retrata dois Moçambiques que a guerra fez separar. O velho
que representa uma raiz longínqua; e o miúdo que representa a hipótese de
futuro (que está doente). O livro começa com este menino que, por causa da
guerra, está desumanizado, não sabe andar, escrever, ler, não sabe nada. Há
toda uma reiniciação que é feita por este velho. Da mesma maneira que o ensina
a falar uma outra vez, ele o ensina a ter prazer, também. A cena da masturbação
tem, desse ponto de vista, o mesmo valor que o velho ensinar o menino a
marchar. Não é que o velho retire daí um prazer, ele não está
instrumentalizando o menino.
Como é o incesto visto
em Moçambique?
Também é interdito. Mas em
certas circunstâncias, muito raras, um feiticeiro pode recomendar que um pai
faça amor com a filha.
Num outro livro, «A
Varanda do Frangipani», uma personagem assume que matou um homem porque o
julgava portador do espírito do seu pai, que havia abusado dela. Na sua
resistência a essa forma de masculinidade parecem sucessivas maneiras de matar
a figura masculina.
Qual é a primeira
construção da nossa masculinidade? É a figura do pai. A do meu pai, que
felizmente está vivo e amo muito, contradiz o estereótipo do macho. É uma
pessoa gentil, de modos suaves sem ser feminino, que valorizava muito o que era
descontabilizado na altura. Trocava tudo para ver um poente bonito. Enquanto as
pessoas olhavam para um jogo ou um carro, ele olhava para uma garça. Eu via
como isso fazia com que ele entrasse em choque com o mundo que o rodeava. Aderi
a essa figura, a essa maneira de estar, como qualquer coisa que descobri que
também a mim me dizia.
Tem irmãos?
Tenho um irmão dois anos
mais velho, que é advogado. Era com ele que brincava, chorava, e com quem
andava à porrada. O meu outro irmão, mais novo sete anos, é um veterinário com
um estranho gosto pelo trabalho. Nós brincamos e dizemos que, com essa
dedicação ao trabalho, ele não deve ser da família…
Vivem em Moçambique?
Vivem. Somos quase
vizinhos, os meus pais, eu, os meus irmãos. É uma família muito nuclear, quase
clãnica. Como os meus pais foram daqui [Portugal] muito novos, aquela coisa dos
primos e dos avós, não usufruímos disso.
Falam-se todos
os dias?
Todos os dias não. Temos
os fins-de-semana onde nos juntamos. A minha mãe é a coluna vertebral desta
pequena família. Não se concebe fora do círculo dos filhos. Os meus pais
tentaram quatro vezes refazer a sua vida em Portugal depois da Independência. O
meu pai é de Rio Tinto (Porto) e a minha mãe de uma aldeia de Trás-os-Montes.
Voltaram sempre para Moçambique e agora estão lá, acho
que definitivamente.
É curioso. Porque são
portugueses, não retornaram à metrópole em 74, e resistiram numa situação de
guerra. Ficaram pelos filhos?
Não só. O meu pai
contribuiu ele próprio, à sua dimensão, para que a Independência acontecesse.
Desde o princípio nos fez acreditar que aquele era um outro país. Perguntam-me
muitas vezes: «Optaste ficar moçambicano, ficar lá?» Não optei ficar lá, não
optei ser. A vida optou por mim. Sem que soubesse, desde menino estava sendo
preparado para ser parte daquela coisa. Nunca me ocorreu: «Vou ser o quê?» Já
estava decidido.
Você sente-se a jóia da família
e a jóia da coroa? Como é que familiarmente gera o facto de ser conhecido, de
dar entrevistas?
Começo por esclarecer como
isto funciona. Na minha família era tido como o menos hábil, o que prometia
provavelmente menos. Em certos momentos tinham dúvidas se era realmente…
Inteligente?
Às vezes me chamavam com
ternura «Atrasadeco», mas era evidentemente com grande amor.
Porque é que lhe chamavam?
Era molenga?
Perdia tudo, esquecia-me
de tudo. Apesar de ser fácil de temperamento, devo ter sido um filho que dá
trabalho e chatice. Conto uma estória. Uma vez mandaram-me comprar pão; poucas
coisas me mandavam fazer, já sabiam que não valia a pena. Fui à padaria, eram
duas da tarde e os senhores me disseram: «O pão acabou, a próxima fornada é só
às cinco». Sentei-me na escada e fiquei à espera, sem que isso constituísse
grande problema porque estava embevecido a ver as pessoas a passar e, se
calhar, a contar estórias para mim próprio. Os meus pais, vendo que não
voltava, mandaram uma expedição para me rebuscar. Contavam a estória com uma
certa graça, «Nem pão o rapaz sabe ir buscar! Como é que se pode ficar à espera
três horas?»
Como é que a família olha
agora para o seu sucesso?
Têm uma grande vaidade, um
grande orgulho. Às vezes sacodem-me, «Fizeste, ganhaste, apareceste!» Eles é
que recortam coisas.
Quando começou a escrever
e a publicar, estavam à espera que chegasse tão longe, no sentido de ter
tanto sucesso?
Não esperava eu, não
esperava ninguém. Estas coisas acontecem por um conjunto de acidentes. É como
haver vida na Terra. Publiquei um livrinho, «Vozes Anoitecidas», num papel
miserável, numa edição muito pobre.
Foi na editora do
seu pai?
Não. Ele trabalha como
gerente, a editora não é dele. O livrinho saiu pela Associação de Escritores
Moçambicanos. Um deles veio para aqui e uma Maria Lúcia Lepecki apanhou-o
acidentalmente na secretária de alguém e o leu. Um dia recebi uma crítica de
página inteira; a senhora via ali coisas que nunca imaginei que alguém pudesse
ver, nem mesmo eu! Mas fiquei muito grato, queria conhecê-la e mandei-lhe uma
carta de agradecimento. Foi esta circunstância que fez com que alguém olhasse
para esta coisa e pensasse em republicar aqui.
O que aconteceu
a seguir?
A Caminho também olhou.
Contactou-me, propôs edição.
Lembra-se em que dia foi,
o que estava a fazer?
Não me lembro bem.
Primeiro foi um telefonema. Depois vim cá de férias e nem queria bem acreditar
no que estava a acontecer. Pensava que ia ficar ali, ser editado num papel mais
bonito e numa edição mais cuidada.
O eco do editor e dos
leitores não lhe traz uma pressão?
Quando escrevo o livro não
escrevo pensando em alguém, nem penso em agradar ou desagradar. O livro sai
assim mesmo.
Não há uma figura em quem
pense e no juízo que vai fazer?
Não. Aí, é uma coisa
comigo. Se não gosto, o livro não sai, mesmo que pense num segundo momento que
talvez calhasse bem. Fiz coisas que não publico e que eventualmente
nunca publicarei.
São experiências
demasiado arrojadas?
Não gosto por
razões diversas.
São
demasiado pessoais?
Algumas.
Dá a impressão de se
esconder. A catarse que faz na escrita é uma coisa que só você entende.
É verdade. Não sou uma
pessoa assim tão transparente como transpareço.
Apesar de não gostar do
peso da responsabilidade, quando está cá fora sente que é o representante da
terra, da gente?
Não me sinto representante.
Mas sinto-me com responsabilidades. O meu país é muito conhecido por coisas que
não são propriamente as mais positivas. Ficaria muito contente que fosse
conhecido por outras razões. Há gente que escreve e com muito valor. Se alguma
missão tenho e quero realizar, é essa: se sou o primeiro a chegar a alguns
lugares, tenho de lutar para que outros entrem pela mesma porta.
Não é nada invejoso?
Não, tenho outros
defeitos. Acho mesmo que no céu cabem muitas estrelas.
É uma visão
muito poética.
Mas é verdade.
Em que se traduz o sucesso
para si? Dinheiro, entrevistas, viagens, admiração?
Representa coisas boas e
más. Algumas não quero, outras gosto de ter. Uma coisa boa é que o mundo fica
mais pequeno de repente, como uma aldeia onde as pessoas todas se conhecem e te
saúdam. Tem logo um lado mau porque é muito unilateral. Gostava de conhecer as
pessoas que me param e querem falar comigo. Não quero ter fãs; quero
ter amigos.
Isso é inviável.
Quero conhecer as pessoas.
Se calhar é um bocado romântico. Nas sessões de autógrafos, com a família, a
minha mulher, o meu editor, tenho às vezes algum desencontro porque eles dizem:
«Assine lá isso». Mais ou menos como quem diz: «Despache-se». São
momentos demorados.
Não é um frete nem um
bocadinho, ser inundado de gente a roubar partes de si?
Às vezes se
transforma nisso.
Quem é que o acompanha
nestes périplos de escritor de sucesso?
Ando cada vez mais com a
minha mulher. Faço questão que me acompanhe e que a gente encare isto juntos.
Não no sentido «Venham ver como o vosso pai ou marido é reconhecido». Nada
disso. Acho importante que cada um de nós visite o trabalho do outro. A minha
mulher trabalha num hospital. É importante que eu experimente as condições
terríveis em que ela trabalha para entender como chega a casa todos
os dias.
É médica, não é?
É hematologista, a única
de Moçambique. Acho também que devia participar num dia de escola dos meus
filhos para perceber como é que aquilo funciona.
Há quanto tempo
está casado?
Há doze. Tenho três
filhos: um de 21, uma de 17 e uma de 8.
Foi pai muito cedo.
O meu filho estuda
Ciências Ambientais na África do Sul, na Cidade do Cabo.
Porque é que estuda na
África do Sul?
O ensino, em geral, se
degradou. Não é uma questão técnica. A relação professor-aluno deixou de ter o
sentido sagrado que a deve envolver. Queria muito que os meus filhos finalizassem
os seus estudos em Moçambique. Agora talvez seja possível porque a nível do
ensino superior as coisas estão melhorando. Mas não posso sacrificar mais o
destino deles àquilo que são as minhas opções. Já o fiz e isso deixou-me um
sabor amargo.
Como assim?
Vivi os anos terríveis em
que não havia nada. Saíamos de casa de manhã com aquela terrível pergunta: o
que iremos trazer hoje para os nossos filhos comerem? Isso tinha um sentido
enquanto éramos todos a experimentar privações. Mas depois, quando se propôs
uma certa hierarquização, o sofrimento deixou de ter carácter épico. Explico:
eu era da Frelimo. Os membros da Frelimo receberam, numa dada fase, um cartão
de abastecimento especial. Dava-lhes privilégio de acesso a lojas onde se
adquiriam algumas, poucas coisas. Por causa dos meus princípios éticos recusei
aquele cartão, deitei-o fora. Não queria ter tratamento especial. Mas isso
introduzia em mim uma questão moral gravíssima: iria sacrificar o bem-estar dos
meus às minhas opções morais. Os meus princípios podiam provocar nos outros,
neste caso nos meus filhos, a continuação de uma situação intolerável.
É uma
equação violentíssima.
Foi resolvida assim: a
Patrícia, porque era médica, recebeu também uma licença para ter acesso a uma
loja menos especial. E aceitámos.
Já passou fome?
Já. Mas era uma fome
transitória, ligada ao facto de trabalhar no mato e o meu regresso à cidade ter
ficado atabalhoado.
Parece subvalorizar a sua
fome. Como se ela não pudesse ser chamada assim por assistir à fome gritante
dos outros.
Uma coisa é ter fome e
saber que daqui a três dias quando vier a avionete, o carro ou o mau tempo
passar, se pode comer. Outra, é saber que a avionete não vem, que não
há nada.
Muitas vezes a ajuda
humanitária é desajustada. Os problemas resolvem-se muito pontualmente sem se
criarem situações estruturais.
O trabalho que faço como
biólogo é tentar reabilitar estratégias internas, indígenas, que farão as
pessoas depender menos da ajuda externa em períodos de crise.
Estava a ocorrer-me um
excerto de um livro carregado de humor onde é muito evidente a corrupção ao
mais alto e ao mais baixo nível. Há uma cadeira de rodas da ajuda humanitária
usurpada por um dos personagens que a aluga a outros que queiram dar umas
voltinhas. E há o tráfico de armas conectado com os administradores, que são
brancos e portugueses. A corrupção grassa no país de alto a baixo?
Não de maneira diferente
que grassa noutros casos. É mais descarada. Tal e qual como a escravatura ou a
colonização, a corrupção é a continuação de uma relação que tem sempre dois
lados. Não há os corruptos de um lado e os honestos do outro. A escravatura foi
feita com cumplicidades internas. Havia elites africanas que enriqueceram
muito. Esta leitura da história que hoje há é muito simplista. Como há um certo
sentimento de culpa dos europeus, ela passa bem. Mas deve ser interrogada,
porque criou da parte dos africanos o discurso vitimista, de ser preciso fazer
valer na Europa aquilo que perdemos durante séculos.
Porque é que esteve ligado
à Frelimo? E como passou ao lado de toda esta corrupção?
Porque acreditava e tinha
um grande empenho.
Já não está ligado?
Sou simpatizante, mas não
sou membro. Custa muito cortar alguns laços que foram muito importantes na
minha vida. Nasci numa cidade em que o colonialismo estava ali, à vista.
Ninguém me explicou, ninguém veio com um discurso político para me incorporar
num sentimento de militância anti-colonial.
Os seus pais
eram burgueses?
Não. O meu pai era
jornalista e poeta. Tínhamos uma vida dura, difícil. Mesmo do ponto de vista da
inserção social e política era difícil num meio politicamente tão arrumado. Eu
e a minha família entrámos em ruptura com aquilo. Foi fácil aderir a qualquer coisa
que representava o fim daquilo; principalmente o que me chocava era o racismo.
Quando fui para Lourenço Marques (Maputo dantes chamava-se Lourenço Marques),
comecei a estudar Medicina.
Mudou-se
para estudar?
Sabia que não ia
exactamente para estudar. O movimento estudantil era muito forte. Havia
fracções de estudantes que tinham ligações com a Frelimo e já orientavam a sua
actividade em função dos objectivos da Frelimo. Estive ligado a esses grupos. A
minha vida passou a ser toda norteada pelas razões da causa. Em 25 de Abril de
74 estava num jornal chamado «A Tribuna», estudava e trabalhava. Pediram-me que
ficasse, deixasse de estudar e permanecesse a tempo inteiro. Rapidamente, e
infelizmente, converti-me em director da agência de informação. Eu e um grupo
criámos a primeira agência noticiosa dentro de Moçambique. Andei pelas
províncias a criar redes de correspondentes populares, etc.
Como é que funcionava essa
rede? Visitavam os sítios e procuravam a pessoa que melhor se expressasse e
pudesse contar o que lá se passava?
A Frelimo tinha uma rede
muito forte desde a base até ao topo. Nos primeiros anos houve uma adesão
imensa. Os núcleos de base escolhiam pessoas dos locais mais remotos (que
vinham de bicicleta). Mandavam as notícias escritas num papel que demorava até
dois meses a chegar a Maputo. As notícias eram: «Um elefante atacou uma
machamba [horta] do meu vizinho». Havia ali mundos diversos que se chocavam. A
seguir fui director da revista «Tempo» e, durante anos, do «Jornal de
Notícias», que era o órgão oficioso. Depois, deixei de ter alguma crença no
projecto. Havia um grande divórcio entre o que se fazia e o que se dizia
que fazia.
São as inevitáveis
contradições político ideológicas. As guerras são sujas.
Aconteceram coisas que me
traumatizaram. Como amigos meus serem presos. De repente, e sem entendermos
porquê, nos tornámos vítimas do poder que defendíamos. O que era traumático era
a falta de lógica disso tudo. Pretendia-se um socialismo parecido com o
soviético, o chinês, qualquer outro; mas Moçambique nunca foi capaz de criar um
sistema, fosse ele qual fosse.
Nisto tudo passou um
tempo valente.
Mais de dez anos. Para lhe
mostrar o que é a ausência desse regime, não trabalhava no jornal e o meu nome
continuou a sair quase durante um ano no cabeçalho como sendo director. Repare
no nível de desorganização e irresponsabilidade que não seria possível num
outro regime.
Foi então que decidiu
voltar a estudar?
Fui para Biologia. Tinha
30 anos.
Isso foi em 85. Em 87
«Vozes Anoitecidas» saiu cá. Quer dizer que andava no segundo ano de Biologia
quando os seus livros começaram a ser publicados em Portugal.
Sim, era um jovem
estudante universitário [risos].
Como foi esse retorno à
escola? Porque foi para Biologia e não voltou para Medicina?
Ainda me matriculei em
Medicina. Queria ser psiquiatra. Eu escrevia, tinha ligação com grupos de
teatro. Já me tinha distribuído por várias coisas e, na altura, sabia o que era
viver com uma médica. Tinha esta percepção de que lá, ou se é médico ou se é outra
coisa. O regresso à escola foi muito interessante porque convivi com jovens
que, na quase totalidade, eram de outra raça e com idades que orçavam entre os
17, 18 anos. Foi um convívio muito profundo porque tínhamos actividades de
campo que demoravam semanas.
Tinham uma adolescência
diferente da sua, que foi muito mais politizada.
Nasci num contexto
colonial em que 95% dos colegas eram brancos. Depois foi o inverso. Mas nunca
senti que houvesse qualquer problema de rejeição, de exclusão.
Nunca foi alvo
de racismo?
Não posso dizer que não.
Moçambique não é um país ingénuo nesse aspecto. Mas nunca foi nada de tão grave
assim que desse para me colocar no papel de vítima.
Os colegas olhavam-no como
um irmão mais velho?
De facto. Eles me perguntavam
coisas até do domínio da sexualidade. Uma vez estávamos numa camarata e havia
uma grande discussão. Quando entrei disseram: «Já chegou o Mia, vamos perguntar
como é». E a pergunta era: «Quando um homem beija uma mulher quem é que tem de
fechar os olhos?»
Qual é a resposta?
Respondi: «Se o beijo é
apaixonado, ninguém sabe se está com os olhos fechados ou abertos». Olharam-me
com o olhar mais desconfiado que possa imaginar, «Este gajo não percebe nada de
beijos!» [risos] Já na altura sabia que o beijo não faz parte dos rituais de
namoro por tradição. É uma coisa muito recente. Descobriram o beijo há uma ou
duas gerações. Saltaram para dentro do beijo e não saem mais de lá!
Beijam-se na rua?
Não é muito frequente. Só
os mais jovens, sim. Fazem-no até com uma certa ostentação.
Beijou as suas namoradas
na rua?
Não. Corríamos o risco,
inclusivamente, de ser presos; advertidos, pelo menos. Depois da Independência,
os polícias, os guerrilheiros que patrulhavam a cidade, tinham valores morais
das zonas rurais e achavam que aquilo não se fazia em público.
Ainda a propósito da
escolaridade, gostaria de recuar mais no tempo porque soube que o Zeca Afonso
foi seu professor. Num dos livros há um personagem que se chama Pastor Afonso,
um mestre, que é uma das referências morais do personagem principal.
Já é a segunda pessoa que
acredita que o Pastor Afonso é de origem portuguesa. Mas não é. É um preto.
Construí-o assim.
O Zeca Afonso foi seu
professor na Beira ou em Maputo?
Na Beira. Queria ensinar
outras coisas. E ensinou. Tinham a ver com a situação política, com o despertar
para o momento que estávamos a viver. Como professor de Geografia, não me
recordo de nenhuma coisa que tenha ficado [risos]. Gostávamos muito dele por
causa da irreverência. Uma vez partiu a perna e foi para a escola
de calções.
Não é fácil perceber
porque é que obstinadamente se manteve em Moçambique, sabendo-se que viveu o
grosso da vida em situações de guerra.
Achava que se saísse, de
alguma maneira, eu morreria. Vivi algumas situações muito difíceis, extremas.
Vi pessoas morrerem.
Justamente, torna-se ainda
mais incompreensível.
É óbvio que há ligações
minhas com o lugar e as pessoas e seria muito difícil refazer as raízes num
outro qualquer lugar. Depois, há quase um sentimento religioso que nos liga à
missão de construir qualquer coisa.
Esse altruísmo…
Não é altruísmo. Estou a
pensar em mim, na maneira como posso ser feliz. O contrário era aceitar uma
missão neste mundo onde não me reconheço e as pessoas compram a felicidade
a prestações.
Portanto, não comprou o
seu frigorífico a prestações?
Não.
Como é a sua vida
material? Vive numa casa, com quintal?
Com um quintal pequeno,
sim. Não vivo mal.
É uma imagem colonialista;
mas imaginamos que os brancos que vivem em África têm casas brancas com
alpendres enormes e terrenos a perder de vista.
Não há, sobretudo nas
ex-colónias portuguesas. A construção espaçosa, o usufruto dos terrenos, é
muito da colonização inglesa. A minha é uma casa vulgar aqui, não tem nada de
especial: uma sala, uma cozinha, quatro quartos. É uma casa relativamente boa,
mas não tem nada de luxo.
Tem vídeo?
Tenho vídeo, computador,
isso tudo.
Perguntei porque sei da
sua dificuldade em ver cinema.
Só agora é que há uma sala
de espectáculo da Lusomundo. Estou muito grato à Lusomundo (aproveito para agradecer!).
Estivemos anos e anos sem cinema. Quando vinha à Europa uma das coisas que
queria respirar era cinema.
Que coisas levava
no regresso?
Trazia listas de
encomendas dos amigos e da família.
Que género
de encomendas?
Agora já há quase tudo.
Naquela altura pediam as coisas mais incríveis. As pessoas do povo, por
exemplo, pedem muito azeite de oliveira e bacalhau, duas coisas que os
portugueses deixaram lá e que têm muita força. As outras pessoas pedem coisas
muito variadas, como telemóveis.
São marcas muito visíveis
da ocidentalidade.
As pessoas, mais do que
ocidentais, querem ser americanas.
A americanidade chega
através da televisão?
Chega. É muito forte. Os
filhos da elite moçambicana sonham todos ser americanos, vestem como os negros
americanos, cantam como os negros americanos.
Rap?
Rap.
A imagem que têm é que ser
moçambicano é ser pobre? Quando a guerra acabou era o país mais pobre
do mundo.
Ser moçambicano não é ser
pobre, ao contrário.
Então de onde vem essa vergonha?
A vergonha deles é porque
Moçambique praticamente não existe. Só a Maria de Lurdes Mutola, a nossa
corredora, ganha.
Não produz estrelas de
Hollywood: não tem mulheres lindíssimas a aparecerem nos filmes, nem galãs por
quem as senhoras se apaixonam. Tem a Mutola e o Mia Couto.
Tem mais. Tem o
Malangatana, muito conhecido fora, e alguns nomes que estão a despontar e são
importantes nas artes plásticas.
A plasticidade da
linguagem é uma das suas características mais fortes. Você que gosta tanto de
desmontar as palavras, tem algum vocábulo sagrado e imutável?
Talvez «Mulher». Tenho
esta ideia de que a mulher tem uma relação especial com o mundo que passa pela
sua capacidade de gerar vida.
Há muita gente que o julga
mulher. Por causa do seu nome.
Ocorre esse equívoco. Às
vezes é ainda mais engraçado: confundem-me o sexo, a raça, a idade, tudo ao
mesmo tempo. Uma vez na Bulgária tardavam em me apanhar no aeroporto, estava a
ficar aterrorizado porque não tinha dinheiro, não conhecia a língua, não sabia
quem me vinha buscar. Junto ao balcão percebo que alguém diz a palavra
Moçambique e, em francês, tento explicar que sou eu. O outro diz: «Não, não,
venho buscar uma escritora africana». E até me explicar foi difícil. Ainda por
cima sou António.
Porque é que se
chama Mia?
Por causa de gatos. Os
meus pais contam que quando tinha dois, três anos vivia com os gatos,
misturava-me com os gatos, achava que era um gato. Temos em casa fotografias em
que estou comendo com os gatos. Disse que queria ser chamado de Mia; os meus
pais aceitaram e ficou.
Ninguém lhe
chama António?
Não. Se me chamarem
António, tenho de pensar duas ou três vezes. Hoje não tenho essa relação com os
gatos. Prefiro os cães.
Publicado originalmente no
Diário de Notícias em 1998 e retirado do blog de Anabela Mota Ribeiro.
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