Eurides
Conceição
Houve
um tempo em que as nuvens daquele céu tinham formatos variados. Eram seres que
eu nunca tinha visto, mas de algum modo sabia o que eram: leões, tigres,
duendes, fadinhas, sacis... Os carneirinhos é que nunca consegui ver lá no meu
céu. Naquele tempo, carneirinhos e cabras estrepoliavam era lá no terreiro. Eu
também!
Ali,
bicho e gente se misturavam... Conversavam harmoniosamente. Tantos segredos
contei aos cabritos e às sabiás magrelas que roubavam carne estendida no pau da
cozinha. Eu era comparsa nos seus crimes inocentes. Talvez, eu as acobertasse
na tentativa de me redimir do mal que outrora lhes causara, quando colocava
pedrinhas miúdas no bico dos sabiás filhotes.
Nesse
tempo, que o calendário tirano levou, as vozes do galo e do jumento eram os
relógios mais eficientes. Assim como pisar na cabeça da própria sombra,
indicava a hora do almoço: bode, feijão de corda, abóbora, maxixe... Nham,
nham, nham! O cheiro do café fresquinho, de Sinhá Uride, se espalhava toda
tarde, convidando a todos pra sentar no banco da cozinha e degustá-lo numa
prosa bem quente. Na Quaresma, os santos encobertos de roxo; no Natal os
cânticos de louvor, e ela lá!
O
rádio, sintonizado na AM, transmitia em suas ondas e Khz as informações do
mundo lá fora e trazia as canções "mais mais da semana". De Gonzaga a
A-Ha, de Kid Abelha a Scorpions... Tantos mais. Ao meio-dia, ela sempre ouvia o
"Repórter Somassa" e para cochilar, as canções da tarde. Várias vezes
fugi, enquanto minha casa dormia, para vê-la, através da janela, cochilando
junto ao rádio.
O
sol pendia no seu trajeto final e lá ia eu, rumo ao paraíso. Casarão de
alpendre alto, cheiro de café torrado, bolinho branco de tapioca, pratos
lavados na gamela e a figura mais especial de todas: Sinhá Uride, cuidadora das
almas, dos corpos enfermos, dos filhos sem mãe, das cabras paridas, dos
cabritos enjeitados, das ilusões das crianças. Alimentadora dos meus sonhos e
da minha gula pelos divinais bolinhos brancos fritos na hora. Regou em mim um
amor tão puro, guiou meus olhos para contemplar a vida de um modo tão simples e
belo. Sem ruge, batom, scarpin... A vida pura, rica em essência. Ela me ensinou
que a liberdade é o maior trunfo da humanidade, que casamento e filhos a gente
escolhe tê-los, ou não, e mesmo assim é feliz. E, principalmente que a caridade
é a forma mais sublime de amar.
Hoje,
este tempo arrancou a poesia daquele outro, destruiu as evidências materiais,
mas em minh'alma não ousará tocar. Nada apagará um amor que nasceu puro, nem
tirará da alma as lições que um tempo ensinou. Não há 1mg de veneno que mate
honra, caráter e amor.
Cabritos
(filhotes de cabra) correndo pelo terreiro da casa. Logradouro do Juvenal ,
Uauá- Bahia
Erika Jane Ribeiro
(Pók Ribeiro).
Poeta, cronista, professora de Língua Portuguesa, oficineira, articuladora
textual com adolescentes e blogueira. Natural da cidade de Uauá – Bahia, terra
iluminada pelos vagalumes e com forte veia cultural, foi acolhida pelo Rio São
Francisco desde os idos de 2000 quando iniciou o curso de Licenciatura em
Letras pela UPE/FFPP em Petrolina - PE. Já em 2010, concluiu o curso de Direito
pela UNEB em Juazeiro – BA e, em 2012, especializou-se em Direito Penal e
Processo Penal. Amante da literatura desde sempre, começou a escrever poemas
por volta dos 12 anos. Em 2007 lançou, numa produção independente, o livro de
poemas “Noites e Vagalumes”. Atualmente, além de poemas, escreve crônicas,
memórias literárias e arrisca-se em composições musicais, em parceria com
amigos músicos. Página na internet: Vagalumes, poesia e vida
3 comentários
Viajei nesta narrativa!
Lendo aqui...mas, sentindo-se na fazenda da minha avó...tempo de menino...menino bode...menino cabrito...Oh coisa boa!!!rsrs
Mais uma vez Pokinha! Parabéns pelo texto! Você é espetacular! rs
Luis Sena (Lulinha)
Parabens isso é um resumo da vida de sinha uriides ,que deixou muita saudade e muita falta a todos nos que conviviamos com elea naquela casa simples mas com muita pureza e amor.
Postar um comentário