O "jeitinho brasileiro" de falar
Volta e meia, surgem na imprensa matérias sobre a
"língua brasileira", o nosso modo particular de falar português, em
geral análises feitas por jornalistas (menos frequentemente por especialistas),
além do depoimento de escritores e outros usuários privilegiados - embora não
estudiosos - da língua. Com raras exceções, esses textos assumem um tom
ufanista em relação ao português tupiniquim, exaltando a nossa criatividade
linguística, um jeito malandro, próprio da identidade nacional, que se
refletiria no idioma. Segundo esses analistas, o português brasileiro é a
perfeita simbiose da mais bela das línguas com o mais versátil dos povos.Esse
tipo de avaliação, além de extremamente subjetivo e questionável pelo seu
chauvinismo (já se disse até que só é possível poetar em português, assim como
só é possível filosofar em alemão), peca por desconsiderar os fatos: aqueles que
enaltecem o "jeitinho brasileiro" de falar nunca empreenderam um
estudo sério e sistemático sobre o assunto. Se o fizessem, chegariam a
conclusões bem diferentes.Em primeiro lugar, o português é, das línguas da
Europa ocidental (românicas e germânicas), uma das mais difíceis. Claro, os
críticos dirão que todas as línguas têm suas complexidades, que nenhuma língua
é fácil, etc. etc. Mas, comparando item a item cada um dos aspectos gramaticais
(número de tempos verbais, colocação pronominal, flexão verbal e nominal...),
veremos que o português é muito mais complexo que o espanhol, francês, italiano
ou inglês, por exemplo. Em nível de dificuldade, nossa língua se equipara ao
romeno e ao islandês. Mesmo o alemão, tido por muitos como uma língua
complicada, é mais simples que o português. Isso porque nossa língua se apoia
no binômio complexidade-irregularidade (isto é, muitas regras e muitíssimas
exceções); já o alemão tem menos regras que o português, e estas têm poucas
exceções.
É óbvio que nenhum povo fala exatamente como dita a
norma culta, mas qualquer brasileiro que viaje ao exterior e conheça outras
línguas perceberá que a distância entre como se fala nas ruas e o que estudou
nos cursos de idiomas é menor do que no Brasil. Exceção talvez seja o espanhol
platino, mas mesmo nesse caso dados empíricos precisam ser examinados.
Em segundo lugar, o "jeitinho brasileiro" de
falar é a tentativa de um povo etnicamente heterogêneo, com os mais variados
substratos linguísticos, de baixíssima escolaridade, e espalhado por um
território continental, de falar uma língua complexa e cheia de
irregularidades. Sem dúvida, o português popular tem o mérito de tentar
simplificar um sistema que causa embaraço até aos eruditos. Mas as soluções
encontradas pela fala do povo nem sempre são as melhores. Às vezes, troca-se uma
regra ilógica por outra idem.
Há duas forças cegas atuando sobre a língua: a mutação,
que rompe a regularidade, e a analogia, que tenta (mas nem sempre consegue)
restabelecê-la. Se o português tem dois tipos de infinitivo (impessoal e
pessoal) quando as demais línguas têm apenas um, há necessidade de uma regra
disciplinando o uso de um e de outro. Como há uma infinidade de casos dúbios
("os alunos levam tempo para aprender" ou "para aprenderem"?),
e, de quebra, existe uma pressão social para falar corretamente (isto é,
segundo o padrão culto), os falantes acabam metendo os pés pelas mãos e
misturando as formas de maneira pouco lógica e pouco prática (certa vez ouvi um
porteiro de casa noturna dizer: "Vocês vão entrarem agora ou preferem
esperarem mais um pouco?").
Objetivamente falando, isto é, deixando de lado as
paixões e atendo-nos estritamente aos dados observáveis, o português nada tem
de belo ou perfeito. A rigor, nenhuma língua é intrinsecamente bela ou boa, a
não ser do ponto de vista particular e tendencioso de quem a contempla. O mesmo
sentimento ufanista que nutrimos por nossa língua os falantes de todos os
idiomas também têm. É tão possível poetar em turcomeno quanto em português.
Excetuando-se os dados objetivos, que o estudo comparado de línguas guiado pelo
método científico produz, tudo o mais são fanfarronices patriotescas que em
nada contribuem para a real compreensão da língua e de seus impasses.
Dito de outro modo, só podemos resolver problemas se
tivermos consciência de eles existem. A defesa apaixonada do "jeitinho
brasileiro" de falar surte o mesmo efeito que a exaltação do jeitinho
brasileiro de lidar com a lei, a política, a cidadania. Se quisermos ser de
fato uma nação desenvolvida, precisamos ser menos autocondescendentes e parar
de tratar o vício como virtude. Todas as línguas têm defeitos e qualidades,
umas mais, outras menos; todos os povos têm seus pontos positivos e negativos,
inclusive no trato com o idioma. O tal "jeitinho", como já assinalado
por inúmeros antropólogos, nada mais é do que a forma como tentamos contornar,
às vezes de modo desonesto, as dificuldades oriundas de nossa própria formação
moral e cultural deficiente: um estado oligárquico e profundamente burocrático,
leis classistas, educação e saúde precárias, as exigências de um mundo
globalizado e altamente tecnológico, e assim por diante. Um dos desafios que
enfrentamos e para o qual não estamos bem preparados é justamente a língua
portuguesa, um sistema tão emperrado quanto os demais. Por isso, diante dos
entraves do idioma, também temos de nos virar. E dá-lhe jeitinho!
Tudo bem, que estejamos conseguindo nos comunicar com
eficiência e criatividade apesar de todos os pesares não deixa de ser louvável,
mas daí a acharmos que nosso sistema de comunicação é nota dez vai uma grande
distância. Talvez repetir o senso-comum, praticar o bom-mocismo e engrossar o
coro dos contentes, dizendo o que todos querem ouvir, seja uma estratégia
politicamente mais inteligente do que provocar polêmica pondo o dedo em certas
feridas. Mas nunca sairemos do subdesenvolvimento enquanto ficarmos legitimando
os nossos erros em vez de corrigi-los.
Aldo Bizzocchi é
doutor em Linguística pela USP, com pós-doutorado pela UERJ,
pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da Língua
Portuguesa da USP e autor de Léxico e Ideologia na Europa Ocidental (Annablume) e Anatomia da Cultura (Palas Athena). www.aldobizzocchi.com.br
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