Mil vezes fim
Os trechos desconexos e "subliteratos" a
seguir necessitam de explicação prévia. Trata-se de um caderno encontrado hoje,
com uma margarida na capa, no qual anotei, sabe Deus o motivo, frases ditas,
ouvidas e imaginadas em diferentes términos de namoros dos últimos oito anos.
Não me preocupei com estilo, arco, narrador, tempo ou nexo, apenas achei
interessante reportar aqui alguns fragmentos do que li hoje- e que me pareceram
razoavelmente bonitos e tristes. Vamos a eles
Aos poucos, no meu asfalto, pode ser que nasça uma
flor. O problema é que você começou a nascer demais. Entende? Demais. E eu
disse: peraí com isso. Você chegou com tanta pureza, tanta. Você me enfraquece
e eu não posso. Você é muitas coisas. Minha proposta pra você é a seguinte: de
vez em quando. Transar, se ver, se falar. Eu sou um homem bem estranho, eu
posso ser seco, eu não quero toda essa sua violência de amor pra cima de mim.
Sua capacidade de odiar quem não te dá esse amor perfeito que você espera. Eu
não quero mais.
Eu amava você pela maneira assustada que você descia as
escadas, se irritando por gostar de mim. Eu deixei de te amar quando percebi
que você era viciado nos primeiros dias do amor. Eu deixei de te amar porque eu
sou viciada nos primeiros dias do amor e -quando seus olhos se aquietaram ao
descer as escadas e me ver atirada no sofá- não pude suportar.
Porque é triste sair da academia e ninguém gostar de
mim. Voltar do almoço e ninguém gostar de mim. Chegar no aeroporto e ninguém
gostar de mim. Então eu quero ter uma mulher, uma namorada, alguém. Mas depois
eu preciso ir embora. E elas sofrem. Mas eu preciso ir embora, entende? E daí
se eu preciso? Então, se você é mais sensível, e eu sinto que você é, eu já te
aviso: use uma armadura de zíper.
Você me disse que eu amava o personagem sem rosto que
estava na minha cabeça e não você. Eu amo de quase morrer o mesmo cara que
nunca existiu. Tá, e daí? Não dá pra fazer o teste e pegar logo o papel?
Eu ganhei uma caixa com discos do Chico Buarque e não
mexo nisso porque preciso continuar provando para as pessoas que trabalham
comigo que eu sou um cara forte. Se vamos sair daqui inimigos, amigos, se vamos
casar não sei. Só sei que eu quero ficar dez dias sem te ver. Eu deveria ter
saudade de você o tempo todo mas eu não tenho. Eu deveria fazer terapia. Você
ficou com alguém nesses dias que não te liguei? Não me conta, por favor. Você
acha que estou bem vestido? Me acho desinteressante pra você. Minha cabeça não
para, não para. Esse pouco toma uma proporção enorme dentro de mim. Nesses dez
dias eu precisei não pensar em você porque precisava provar para aqueles caras
que eu não sou um moleque. E não dá pra provar isso pra eles e pra você ao
mesmo tempo. Você quer dormir lá em casa? Posso te levar? Me liga chegando? Eu
deleto o que não sei lidar. Eu não sei lidar com você. Eu não quero te perder.
Eu não sei dizer que amo mas já anotei isso no meu iPhone como um "to
do" pro ano que vem.
Você queria ir a pé mas estava chovendo. Você apertou
os cantos do cérebro, como se existissem cantos pra descansar o que pensamos, e
eu reconheci aquela dor. Você estava apaixonado por outra. Era a cara que você
fazia pra mim lá no começo. A cara de doente terminal aprendendo a viver.
Estava chovendo e você se assustou com o barulho do meu limpador de pára-brisas
quebrado. Você é como um filhote de gatinho, tão indefeso, tão assustado, tão
sobrevivente de caixas de papelão esquecidas. Tão pronto pra viver em algum
espaço com apenas comida e água. Sumir em tetos, se retrolamber e, finalmente,
virar aquele ser que não precisa mas fica por perto. Sentamos na mesa de quando
brigávamos. senti ciúme. Ela ligou. Você atendeu nervoso. Não senti ciúmes.
Tudo o que eu poderia sentir, que sempre era tão maior do que eu poderia, eu sentia
agora por outro. E você sabia porque viu alguma coisa no meu Facebook.
Seu cheiro de testosterona ainda invade tudo. Eu ainda
fico meio paralisada com você. Mas não sinto mais amor. Seu carro de playboy
chegou, pela última vez, causando na rua. A música alta. Os óculos escuros. Uma
frestinha da janela pra me dar oi e o cheiro de testosterona invadiu dezoito
bairros. Você causa em mim o que um homem bonito e desconhecido me causaria ao
entrar em um restaurante. "Olha, um homem bonito". Você foi a pessoa
que mais amei na vida e agora me causa o susto de uma beleza desimportante que
atravessou a rua em segundos.
Você tentou me ajudar, mesmo sendo final de ano. Você
me disse "desejo vive na ausência, na saudade, na imaginação, no não
saber, no silêncio, na lacuna". Você disse isso mesmo? Não lembro. Eu
sempre invento em cima de você. Ainda que você diga suas coisas incríveis, você
é sempre melhor de ser inventando. Eu reclamei do frio. Mas como se ontem
estava tão quente? E você pegou o gancho e disse que era aí mesmo que eu errava
tanto. "Uma hora esfria, depois esquenta, é saber esperar, é saber dançar,
é deixar o outro vir e sentir e dizer e poder ir e voltar". E eu espero? E
você disse, como se pra você isso também fosse difícil: "não, você vive a
sua vida". Você rachou a conta pela primeira vez e voltou a pé. Eu gritei
"obrigada" da janela, você não ouviu porque estava livre. Eu não
senti nada a não ser como era maluco não sentir nada.
Porque você fala em "bucetinha" nos primeiros
três segundos eu não consigo nem sentir melancolia. "Como está essa
bucetinha? Depilada? Cabeluda?". E eu não tenho a menor vontade de transar
com você. E você reclama "pare de tomar esses remédios, você está ficando
sem libido". A psiquiatra disse que eu ficaria apenas mais seletiva. O
remédio não tira o apetite por nada, apenas a compulsão. A ansiedade
desenfreada. Fico pensando se te amei ou tive uma compulsão desenfreada por
você. Se você não era uma promoção imperdível de roupa importada, bonita, cara
e cheirosa. E eu te enfiei mil vezes dentro de minha sacola. Quis comprar sua
loja inteira da mesma peça. Você era tão simples e eu tão alucinada querendo
decifrar cada enigma. Você disse logo de cara "olha, vou te falar uma
coisa, toda mulher é chata, você nem é das mais chatas, o seu único problema é
que você é chata rápido demais, toda mulher sabe a importância de disfarçar
isso no começo". E você disse também "mas fica sussa porque pode
parecer que o mercado tá cheio de boas ofertas mas a maioria é bem fraca, bem
besta... já uma mulher que nem você e ainda com essa bucetinhacomo é que ela
tá? Depilada? Cabeluda?". Era a hora de ir embora pra sempre.
Eu não consigo. Eu sempre lembro de você apertando meu
pé naquela festa caída, quando ainda nem éramos amigos. A mala pronta, o taxi
lá embaixo e você de pau duro chorando e me perguntando "que que eu faço
agora?". Aqui um calor infernal e você com a rinite atacada por causa da
neve. No Skype você está sempre de cueca com camiseta e é tão bonito. Você tem
aquele microfone igual ao da Madonna pra poder passar roupa enquanto fala
comigo. Adoro ver sua sala e imaginar que um dia posso ter coragem. Dai você me
xinga: "Você planta um broto de feijão e fica gritando pra ele crescer
logo". "Você rega tanto que mata de tanta água". Fico com raiva
porque você também gostou de mim com muita pressa e agora a culpa da pressa é
só minha. Lembro de quando eu te disse que estava apaixonada. Você ficou
nervoso "como você pode saber isso? Você nem me conhece!". Só que
você disse isso e estava morando na minha casa há vinte dias.
Tati Bernardi é escritora, redatora, roteirista de
cinema e televisão e tem quatro livros publicados.
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