Essas coisas da gente
Tenho sido saudade. De afeto, de sexo, de beijo, de
companhia, de conversa boba, de jantar a dois, de banho a dois, de filme em
casa. De viajar com as amigas e estourar em gargalhadas num quarto de hotel,
esvaziando o frigobar, dividindo maquilagem, pegando emprestado colar, bolsa e
coragem para sair na balada.
Tenho sido rotina. Certezas diárias de coisas simples
que acontecem à mesma hora, feitas sem pensar, sem sentir. O pão, o arroz, o
chuveiro, a pasta de dentes apertada no meio, a indiferença do vizinho, o
dinheiro para a verdura, a sapatilha confortável que varreu da memória a
sensualidade dos saltos.Sim, já houve saltos. Altos e finos. E meias de
costura. E vestidos colados. E sutiãs de renda. Onde estão? Não havia solidão
com eles. Nem saudade.
Agora, somos eu e a TV. Programação ininterrupta.
Antigamente, tinha hora para acabar. Ficava azul, desligava. E mais antigamente
nem ficava azul, nem desligava: chiava tanto que parecia chuva forte. Dava
sono. Agora, tenho vozes que me fazem companhia. Ininterruptamente. Você sabe
que eu nunca te esqueci...! Santa Missa em seu lar... A descoberta de mais uma
pirâmide... O urso preto pesa, em média, 350kg... O Senado federal aprovou hoje
projeto de lei que...". Ganho até um beijo todas as noites. Do gordo.
Ando negligenciando os livros. Com este que chegou hoje
cedo, são sete, novos, esparramados pelo apartamento. Confissão desonrosa: não
li nenhum.
Nem o do banheiro. Tem um Mia na cozinha e um Drummond na frente do
computador. Comecei um Ruffatto e li umas 10 páginas. Mas sumiu no meio da
bagunça do sofazinho amarelo que está sendo arrumado faz uns três meses. Livros
adoram camuflagem. Encontrei um da Hilst esta manhã.
Debaixo do notebook.
Mulher forte; sobreviveu. Ainda há esperança para os pockets de Camus e Beauvoir.
A pilha de saquinhos coloridos de sapatilhas Ballasox que está na estante deve
ter alguma coisa a ver com o sumiço dos miúdos. A empregada me contou que
livros pequenos precisam ser guardados em saquinhos. E quem sou eu para
argumentar com a guarda-livros!
Os cachorros estão com frio. Eu também. É este quarto
gelado que não promete nem cumpre. Aqui na cama só os meus pés para encostar um
no outro debaixo do cobertor cor-de-rosa. Sem companhia esta noite. E nas
outras. Só a TV. E a voz da Sandra Bullock que é possível reconhecer mesmo sem
olhar. Filme clichê. Fórmula hollywoodiana. Advogada desleixada e inteligente
ganha o amor do galã e termina o filme feliz, bonita, bem vestida e rica. E
continua inteligente. Podia acontecer com todas as mulheres isso de ser feliz,
não podia? Acontecer de verdade. Na vida de verdade. Uma vez por ano e não se
fala mais nisso... Ei, ei, ei, ei, ei! Que encosto mimimi é este?! Xô,
mulherzinha! Sai deste corpo que só te pertence quando a cabeça falta!
É sempre isso quando alguma ilusão escapa de um script
e pula na minha cama. Não dá tempo de mudar o canal. O ouvido percebe tarde
demais que um felizes para sempre se apossou sorrateiramente do travesseiro,
acertando em cheio o setor de feridas abertas. Duelo. Arranhões novos. Mordidas
doloridas. Eu venço.
Tenho sido resiliência.
Cinthia Kriemler
- Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de
Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e
Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na
oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de
contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo
de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas
“Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma
de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da
Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há
mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
5 comentários
Muito bom, adorei, não sei porque me pareceu bem uma pessoa, parece que estava escutando você falar.
Beijos
Martha
Nossa, que baita texto, que coisa isso!! Parabéns, Cinthia, esse me abraçou, me apertou, me fez refletida nas linhas escritas e não escritas. Que texto esse!!!
Cynthia, que sensacional! Triste realidade essa tal de solidão! Você escreve com primor! Sou fã das suas crônicas! Beijos, Beatriz Helena Queiroz
Cinthia, vc esmiúça como poucos as causas/consequências da solidão, colocando o dedo na ferida (permita-me esse clichê) com coragem que poucos têm. As marcas inequívcas de uma grande escritora, cada vez mais reconhecida e admirada. Tenho orgulho de poder dizer que sou seu amigo. Abraços e um super feliz 2014!
Edelson Nagues
Moça, você escreveu por todos que sofremos(?) de solidão auto imposta, mesmice mesmerizante (isso, sim, é ruim pra danar!) e a tal capacidade de adaptação com a qual só competem os vírus - mas, ao contrário desses, fazemos um bem inegável. E grata pela declaração de 'dependência', viu? (rsrs)
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