O COLECIONADOR
Paulo Pitaluga
Os dois policiais caminhavam lado a lado e em absoluto
silêncio por entre as estreitas ruas que serpenteavam pela parte velha da
cidade. Faziam a habitual ronda da madrugada, que começara à meia noite e
terminaria com os primeiros labores do amanhecer, lá pelas 6 horas da manhã.
Ficavam a noite inteira caminhando sem parar, por entre
becos, vielas e largos e, de quando em quando, de esquina em esquina, um deles
assoprava um estridente apito, como que alertando os possíveis ladrões de suas
presenças, evitando assim, um desagradável encontro com os mesmos. Um perfeito
acordo de cavalheiros.
Quase nunca acontecia nada durante a ronda da
madrugada. Raramente os policiais precisavam intervir efetivamente, seja para
prender algum ladrão, seja para apartar alguma briga de desordeiros. A parte
antiga da cidade era justamente a mais calma e sem problemas, principalmente
para a polícia. Não se comparava o trabalho tranqüilo desses dois policiais com
a agitação e o perigo que corriam os seus colegas nos bairros mais afastados do
centro, notadamente junto às favelas que haviam se proliferado em determinadas
regiões. Quando nada, estes estavam trocando balaços com marginais e traficantes
de drogas.
Conscientes dessa calma e tranqüilidade, os dois
despreocupadamente seguiam o seu caminho, adentrando por uma das mais estreitas
ruas centrais, meio curva, com ligeira declividade. Os casarões coloniais, com
seus azulejos portugueses do século XVIII e suas cantarias de pedra trabalhada,
todos edificados um ao lado do outro, faziam um só correr de portas, janelas,
beirais e sacadas de ferro. Um panorama arquitetônico, que à luz dos esparsos
postes de iluminação formavam um conjunto urbanístico de rara beleza.Mas essa
mesma fraca iluminação deixava à mostra um moderno asfalto que havia sido
aplicado sobre os paralelepípedos antigos, atitude essa de algum prefeito sem
visão histórica, querendo angariar votos às custas da delapidação do
patrimônio da cidade, trocando-o por modernas e inúteis obras de aparência e de
fachada. Mas, a autoridade, num raro momento de inspiração ancestral, manteve
as antigas bocas de lobo, mandadas instalar por algum seu colega alcaide
municipal, há não menos de 150 anos atrás.
Com o aproximar do amanhecer, o frio aumentava, fazendo
uma tênue neblina abaixar rapidamente sobre a viela estreita. Um fim de noite
tipicamente colonial.
Ao dobrar uma curva dessa rua, subitamente um dos
policiais segurou o outro pela manga da farda, fazendo-o estancar de imediato e
apontando silenciosamente para o fim da ladeira, lá embaixo, mostrou uma
estranha e suspeita figura, que a luz fraca e a neblina da madrugada impediam
perfeitamente de divisar.
Era um homem numa estranha atitude, meio abaixado e
trabalhando em algo junto à calçada estreita. Nenhum som, nenhum barulho fazia.
Só se divisava àquela distância, aquele misterioso vulto.
Os policiais entreolharam-se e ainda sem trocar
qualquer palavra, desandaram a correr ladeira abaixo, na direção da figura, um
deles tocando desesperadamente o seu estridente apito.
O homem, assustado com tal súbito aparecimento, num
esforço maior conseguiu levantar algo um tanto pesado e começou a fugir à
perseguição imposta pelos diligentes homens da Lei.
A corrida não durou cem metros, pois o homem,
sobraçando enorme peso, em visível desvantagem, mal conseguindo correr, foi
alcançado pelos guardas bem na entrada de um pequeno largo, clareado pela luz
esmaecida de um único poste de iluminação.
Os policias abordando-o, de imediato lhe deram voz de
prisão. A rigor não sabiam nem porque, mas a simples fuga do cidadão ao
primeiro apito, o fazia um marginal perigoso, no entendimento dos guardas.
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No lado de dentro, a delegacia de polícia era bem
típica dos anos de pós guerra, talvez influenciada pelos filmes americanos,
mostrando os postos policiais do Brooklin.
À porta um soldado sentado inversamente numa velha
cadeira, com os cotovelos apoiados no espaldar, e com a cabeça sobre os
braços, ressonava ligeiramente. Um corredor comprido e sujo levava da porta de
entrada à sala do comissário de plantão e, de quando em quando, uma porta ora à
esquerda, ora à direita, conduzindo para o cartório criminal, almoxarifado e
demais dependências da repartição policial.
A sala do comissário era bem simples, tendo a frente
uma escrivaninha velha, suja, com o tampo todo riscado e cortado à canivete; ao
lado um pequeno armário com frente de vidro - alguns já quebrados; do lado
oposto, numa estante baixa, empilhavam-se os inquéritos e processos, que iam e
vinham do fórum criminal.
Sentado na escrivaninha, estava o comissário de plantão.
Sujeito moço, estava na carreira há poucos anos e aguardava o término de seu curso
de bacharelado em Direito para pleitear uma promoção a Delegado. Sua família
era do PSD e o governador do mesmo partido e as coisas deveriam ser fáceis. Boa
pessoa, tratava com respeito a todos, seja preso, seja queixoso. Muito estimado
pelos companheiros de profissão. Solteiro, nunca se casara alegando falta de
tempo para namorar. Universidade e polícia preenchiam integralmente o seu
tempo. Nas horas vagas, as poucas horas vagas que alegava ter, dedicava-se tão
somente à sua única paixão: uma coleção de selos.
Menino ainda herdara a coleção do pai e tendo tomado
gosto pela coisa, aos poucos foi aumentando pacientemente o seu acervo,
gastando nisso, uma parte de seu vencimento mensal.
Era assíduo frequentador das feiras filatélicas
dominicais e ainda das lojas especializadas no ramo. Possuía até mesmo
correspondentes no estrangeiro, com quem fazia costumeiramente trocas de selos.
Mandava selos brasileiros e recebia selos dos mais diversos países. E assim era
a sua vida, mansa, calma e descomprometida.
E aquela hora da madrugada, o Comissário sem ter
absolutamente nada o que fazer, estava justamente pensando na sua coleção,
enquanto retirava cuidadosamente um selo de um envelope. Fazia aquilo
instintivamente, pois seus pensamentos estavam bem distantes.
Estavam na compra de um outro álbum; na visita de fim
de semana a um conhecido também colecionador; na ida a um comerciante
especializado em filatelia adquirir um excelente exemplar do começo do século
que lá havia visto há alguns dias antes; nos seus catálogos filatélicos
brasileiros e estrangeiros. Estava realmente bem longe da delegacia de polícia.
Nesse divagar, as suas elucubrações foram violentamente
interrompidas por um verdadeiro tropel. Despertou de seu onirismo filatélico e,
levantando os olhos, viu os dois policiais entrando abruptamente na sala,
escoltando o homem preso.
- Doutor, pegamos este ladrão aqui em flagrante, foi
dizendo de chofre um dos soldados, visivelmente satisfeito com o seu grande
feito policial.
O comissário olhou para o preso e viu um homem de meia
idade, relativamente bem vestido, com boa fisionomia e aparência, cabelos em
desalinho e com o rosto e a camisa suados - com a corrida que dera e o susto
que levara -, mostrando um total nervosismo e desconcertante acanhamento.
Enfim, um tipo nada característico de ladrão. Pelo contrário, demonstrava pela
aparência ser um homem de bem.
- Pois é,
Doutor, nós o pegamos no flagra roubando uma tampa de bueiro, disse o outro
policial, adiantando-se e mostrando ao seu superior a pesada boca de lobo que carregava
consigo, como prova inconteste do crime cometido.
O quase bacharel ficou mudo, olhando para o ladrão,
para os policiais e para o pesado objeto de ferro, sem entender quase nada, ou
melhor, sem entender absolutamente nada de tudo aquilo que na sua frente se
passava.
Refazendo-se da surpresa, postando-se como autoridade,
ficando em pé atrás da mesa, inclinando-se para frente com as mãos sobre a
mesa, exclamou:
- O que? O senhor roubar uma tampa de bueiro? Não tem
vergonha nessa cara lavada? Com tanta coisa aí para ser roubada e o senhor
escolhe logo um treco desses?
- É isso aí doutor. Aqui está a tampa p’ra provar,
disse triunfante o policial que a sobraçava.
O jovem comissário estava atônito. Nunca vira em sua
breve carreira um roubo tão esdrúxulo. Nem mesmo nunca ouvira falar nisso.
- Diga-me uma coisa, óh meliante - falou ríspido o
comissário ao preso, que a essa altura estava muito mais nervoso e apavorado -
o que o malandro aí quer com uma tampa dessas?
O soldado que estava a seu lado, deu-lhe um cutucão nas
costelas para que começasse a responder às perguntas da autoridade.
Achando que, diante do espanto do comissário, das
perguntas que ele efetuara e ainda da situação constrangedora e difícil em que
se encontrava, deixando de lado a vergonha em que se encontrava, o preso
conseguiu desembuchar timidamente.
- Sabe doutor,
eu acho que posso explicar convenientemente o lamentável incidente - balbuciou
o preso. Eu sou um homem de bem, sou engenheiro e alto funcionário do
Ministério da Viação e Obras Públicas. O problema é que eu faço coleção de
tampas de bueiros e dessa daí eu ainda não tenho.
O espanto do comissário aumentou. Olhou atônito para o
preso, para o pesado objeto de ferro, para os dois policiais, como que esperando
por novas explicações, pois que ainda estava deveras confuso. Sentou-se
pesadamente na cadeira.
- Estamos em meados do século XX e nunca tinha ouvido
falar em coleção de tampa de bueiro. Meu amigo, disse já mudando sensivelmente
o tom de voz - com tanta coisa aí útil para o senhor colecionar e o senhor
cisma logo em juntar uma porcaria dessas, onde se pisa, se cospe, bêbado
vomita, passa até esgoto? Porque não coleciona chaveiro, caixa de fósforos,
flâmulas ou, ou, ou ... selos, como todo mundo?
Ao mencionar a palavra selo, imediatamente um estranho
sentimento apossou-se do comissário. Numa fração de segundo pensou em sua
coleção de selos e comparou o seu ânimo de juntar e guardar os seus selos com o
desse senhor, também colecionador, que aí estava, tímido à sua frente, na
iminência de ser enquadrado criminalmente como ladrão.
Quase que imediatamente apossou-se dele um espírito de
solidariedade, pois, em última análise, eram colegas. Ambos eram levados por um
sentimento inexplicável, uma vontade irrefreável de juntar alguma coisa,
guardar e ordenar para a posteridade uma gama variada de objetos que para a
maioria esmagadora da população, nenhuma utilidade teria. Sim, eram colegas.
Imbuído já pelo espírito de comunhão de idéias e de
sentimentos, o comissário mudou completamente de idéia, tanto na atitude como
no tom de voz.
- Diga-me uma coisa, como é e porque começou a
colecionar isso daí? Perguntou já até mesmo curioso pela estranha coleção.
- Sabe doutor, essas tampas são verdadeiras obras de
arte em ferro fundido e acho eu que toda a obra de arte, por mais esquisita que
seja, deve sempre ser preservada. Começando por achar bonito, depois com o
objetivo de preservar essas tampas de bueiro, eu comecei a juntar. Depois,
tornou-se realmente uma coleção. Até um catálogo inglês eu tenho ...
O comissário com um gesto de cabeça,concordou com o
homem, pensando nos seus catálogos filatélicos. - Outra coisa, disse o policial
mansa e amigavelmente, quantas peças já tem em sua coleção.
- Exatamente 76, respondeu o colecionador. - Outra
coisa, senhor ... quer dizer, doutor ...
- Almeida, Arnaldo de Almeida, a seu dispor.
- Pois é, doutor Arnaldo e essa tampa de bueiro aí, tem
muito valor, digamos, histórico, para uma coleção desse gênero?
Bastante esdrúxula, por sinal... Ouvindo a pergunta, o
Almeida pegou o pesado objeto que ainda estava nas mãos de um dos guardas e a
apoiou sobre a mesa do comissário.
- Realmente é uma peça raríssima. Viajei 2.000
quilômetros, do Espírito Santo até aqui, somente para ..., bem, somente para
conseguir esta tampa.
Entendeu, não é senhor delegado? Só p’ra isso eu vim até
aqui. Por causa da raridade da peça que eu vim buscar.
- Mas por que essa raridade toda. Me explica isso,
disse o comissário.
- Como pode ver, senhor delegado - continuou o Almeida -
pode verificar ainda visível o “made in UK” em alto relevo aqui nesta parte de
baixo. U.K. quer dizer United Kingdon, ou Reino Unido. É na Grã Bretanha, sabe.
Isto daqui, meio confuso, é a marca do fabricante, já muito gasta por que fica
na parte de cima. Possivelmente a Hopkins and Sons, de Cardiff. É o estilo
muito característico dos produtos de ferro fundido fabricado por essa família
inglesa, desde fins do século XVIII. Com um pouco de sorte, se limparmos bem a
parte inferior, poderemos ver o ano da fundição em baixo relevo. O senhor
repare no tipo característico das grades, o formato bem elaborado da peça, o
floreado principal e ainda estes altos relevos daqui dos cantos. Tipicamente
uma peça da primeira década da era vitoriana. Calculo o ano da fundição entre
1840 e 1850.
Pasmo estava o comissário. Que sapiência, que precisão
de detalhes, que conhecimento profundo da matéria. Quantos anos não precisou
ter estudado para ter chegado a essa ciência toda. Que aula não tivera acerca
de uma peça tão rara e histórica. O homem o deixara simplesmente encantado.
- E como o senhor acha que essa rara peça veio parar em
Cuiabá?
- Bem, senhor delegado, não pude apurar ainda com
certeza. Mas algum intendente municipal, por volta de meados do século passado,
deva ter feito essa encomenda à Inglaterra. Alguns antigos postes de iluminação
que vi pela cidade e esses tipos de tampa devem ter vindo juntos. Nas minhas
andanças observando essas tampas pela rua, contei umas 15, sempre do mesmo
modelo e da mesma marca. Escolhi essa porque estava, à primeira vista, em
melhor estado de conservação.
- Então isso é
raro mesmo!
- Realmente
muito raro, respondeu o Arnaldo, esta peça para mim, significa tanto como um
Olho de Boi para um colecionador de selos. Ao ouvir essa frase, o comissário
chegou a arrepiar. Isso fora demais para ele. Com essas palavras o Almeida
conseguira tocar profundamente em sua alma, abalara os seus sentimentos mais
íntimos e adentrara em seu coração.
- Um Olho de
Boi. De fato, de fato, pensou, o que não daria para ter um Olho de Boi. A vida
inteira almejara esse selo. Até já havia sonhado com ele, mas nunca tivera
dinheiro o suficiente para comprá-lo.
- É valiosíssimo, é raríssimo, continuava pensando em
frações de segundo. Um Olho de Boi é tudo o que eu mais quero para minha
coleção. Daria tudo para ter esse selo. Até roubaria se fosse o caso ...
A esta altura dos acontecimentos o comissário estava
deslumbrado com o homem; já o estava vendo como um irmão, como um amigo íntimo
de longa data, um amigo de infância até, tal a afinidade que sentia por ele.
Sentiu-se perfeitamente identificado, enquadrado em sua filosofia de aquisição,
de ampliação de uma coleção.
- Sim, até mesmo roubaria ..., admitiu consigo mesmo.
Seus devaneios foram bruscamente interrompidos pelas palavras afoitas de um dos
guardas:
- Como é doutor, trancamos o bruto para interrogatório
amanhã?, quebrando o seu estado de êxtase. Voltando-se abruptamente para os
seus dois guardas, o Comissário foi enérgico:
- Fora. Vocês dois, sumam-se daqui agora. Voltem p’ro
diabo de sua ronda e não me apareçam aqui tão cedo. Xô, Xô ! vociferou o
comissário, aos gritos, para os dois guardas que haviam prendido o colecionador
Almeida.
Ambos se entreolharam, deram de ombros estranhando a
atitude inesperada do comissário, olhando para a tampa do bueiro em cima da
mesa fizeram uma meia volta e saíram da sala sem fazer qualquer comentário. Nem
um mas!, tiveram coragem de retrucar.
Expulsos os guardas, o comissário ficou num silêncio
absoluto, deixando o Almeida bastante nervoso outra vez. Olhou calmamente para
a tampa de bueiro sobre a sua mesa, que ficara um tanto respingada com a
sujeira meio molhada da peça, coçou a cabeça num gesto involuntário, ficou em
pé, contornou calmamente a sua escrivaninha e chegou-se junto ao homem. Mediu-o
bem, olhou em seus olhos, colocou as mãos na cintura e disse laconicamente, mas
de sopetão:
- Quanto ao senhor, pode ir embora também!
O colecionador Almeida não esperou segunda ordem. Sem
entender muito o que havia se passado, deu uns 3 ou 4 passos para trás,
virou-se dirigiu-se para a porta, sem ao menos ter a coragem de dizer qualquer
coisa ao comissário.
Nenhum agradecimento, nenhum pedido de explicação,
nada.
Ao chegar à porta de saída da sala, ouviu novamente a
voz do comissário, que o fez estancar e a virar-se instantaneamente para o
policial:
- O senhor está se esquecendo a sua tampa de bueiro!
Paulo Pitaluga é historiador, sócio
efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso e seu ex-presidente.Autor
de 24 livros já editados acerca da história regional matogrossense e mais de 60
artigos publicados em revistas especializadas.
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