Querido Papai Noel
Texto publicado na Folha de S.Paulo
por Michel Laub
Em mais este Natal cristão, dê um presente ao meio
cultural brasileiro fazendo com que:
- A disciplina de interpretação de texto se torne
diária em todas as escolas, de preferência em aulas longas e sem direito a ir
ao banheiro.
- Não se atribua valor automático ao que não
necessariamente tem valor: o novo em relação ao velho, o denso em relação ao
simples, o pessimista em relação ao otimista.
- Deixem Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Caio
Fernando Abreu em paz.
- Não haja mais chamadas jornalísticas do tipo "O
evangelho segundo Clarice", "Em busca do Rosa perdido" ou
"Caio F de A a Z".
- Cronistas parem de escrever sobre pesquisas sexuais
feitas com ratos.
- Cineastas parem de botar a culpa de seus insucessos
no público.
- (Parem, também, de identificar sucessos de bilheteria
com qualidade estética.)
- Trailers se abstenham de contar dois terços do filme
e botar uma piadinha ao final.
- Resenhas se abstenham de contar três terços dos
livros.
- Um único funcionário das livrarias de aeroporto, e
também o dono que os contrata e orienta, e também o público que frequenta o
ambiente e endossa com suas compras tristes a seleção de títulos das gôndolas e
prateleiras, tenham algum resquício de gosto literário.
- Comediantes ruins não atribuam mais sua ruindade à
ditadura do politicamente correto.
- (E ninguém mais use termos e construções como
"politicamente correto", "chorume", "eu sou polêmico
mesmo" e "ao menos ele teve o mérito de abrir o debate".)
- Artistas, ensaístas e palpiteiros em geral evitem
dizer que não fazem lobby, não participam de conchavos, não integram panelas e
dão suas opiniões doa a quem doer (na maioria das vezes, dói só no fígado de
quem ouve).
- Escritores parem de explicar a própria obra com
conceitos que não são seus, e sim de alguma patrulha política, de gênero ou de
departamento acadêmico.
- Críticos resistam à tentação de comentar livros de
desafetos pessoais ou desafetos da namorada.
- Autores consigam se controlar e não respondam aos
críticos. Entendo o impulso de provar superioridade intelectual, moral e -em
casos raros- física, mas a melhor forma de fazer isso é com silêncio público e
amargura que estraga a vida familiar.
- Volte a ser possível esquecer da existência de
alguém, em vez de ser lembrado dela em links, retuítes e até posts na página de
quem morreu.
- Volte a ser possível fazer ironia sem precisar
explicá-la com reticências, pontos de exclamação ou emoticons.
- Volte a ser possível ser contestado sem acusar o
contestador de baixar o nível da discussão.
- Acabe o culto intelectual às estatísticas e ao que
dizem "pesquisas recentes".
- Acabe o culto intelectual à pornochanchada (ok quanto
ao outro culto a esse nobre gênero cinematográfico).
- O Congresso Nacional proíba os hologramas de músicos.
- Bandas de rock escolham --não dá para fazer as duas
coisas ao mesmo tempo-- entre discurso de contestação aos poderes estabelecidos
e cachês de publicidade.
- E letristas contratem revisores (dá só uns R$ 9 a
lauda).
- Alguém explique por que tanta gente, deixando claro
que paira acima da vulgaridade, passa o dia no Twitter comentando Faustão,
"The Voice Brasil" e a passagem de Francisco Cuoco e sua namorada pelo
Castelo de Caras.
- Alguém explique por que condenamos com tanta fúria a
ostentação do Rei do Camarote nas mesmas timelines que ostentam, o tempo todo,
os trabalhos que fazemos, os pratos que comemos e os lugares para onde vamos
nas férias.
- E também por que alguém vai a um show apenas para
registrar a performance do artista no celular, revendo-a mais tarde --se é que
vai rever-- numa tela pequena e com qualidade medonha de som e imagem.
- Anciões que ainda frequentam esses shows (oi) parem
de gritar contra a nuvem porque o mundo era tão melhor antes, não é mesmo?
- Haja só um pouco menos de sarcasmo contra alvos
fáceis, como catálogos de arte contemporânea.
- Não exijam de artistas que tenham opinião sobre tudo.
Artistas têm o direito de ser omissos, alienados, incoerentes e burros.
Michel Laub é escritor e jornalista. Publicou cinco
romances, entre eles "Diário da Queda" (Companhia das Letras, 2011).
Escreve a cada duas semanas, sempre às sextas-feiras, na versão impressa da
"Ilustrada"
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