Almas Inquietas
Hoje havia uma esperança de lua cheia. Mas quem se
encheu foi o céu. E transbordou. E jorrou. As nuvens desfizeram-se em gotas
cintilantes que ao mesmo tempo que molhavam, lavam a alma e a deixavam aberta,
inquieta. Bem mais inquieta do que já é.
Parei silenciosa olhando aquelas pequenas gotas de
cristais líquidas que tilintavam ao bater no telhado vizinho e me amoleciam os
sentidos. Em um movimento lento e ao mesmo tempo rápido eu era tragada pra
dentro de mim mesma, observando todas as minhas inquietudes que bailavam no
ritmo ditado pelas gotas cadentes.
Seria eu uma alma tão diferente das outras?
Seria eu um ser alheio a este mundo?
Seria eu parte componente de outro lugar perdido nesse
espaço-tempo que sequer sei mensurar, sequer sei onde está?
Por vezes, por várias vezes (e se eu as escrevesse não
caberiam no papel, se eu as cantasse não caberiam melodias e se eu as contasse
faltariam grãos de areia), olho ao redor e não me reconheço.
Não faço parte das ruas: entradas e saídas, rotas
lacrimejadas de derrotas, de cacos de sonhos, de ecos roucos. Meus pés não
encontram o chão. Meu chão está no céu. De ponta-cabeça é tudo mais
interessante, de ponta-cabeça todo mundo tira o chapéu para o dia, para a
noite, para a Maria e para o João.
Não faço parte das pessoas: não encontro luz em olhos
distanciados de si mesmos, não ouço vozes serenas em dias de feira, não ouço
sussurros amorosos. E nem o contrário: não ouço gritos escandalosos ou choros
arrependidos. Quando muito reconheço bocas mudas, olhos fechados, ouvidos
sedentos de palavras macias.
Não me reconheço no tempo: esqueci-me de dar corda no
carrilhão da sala. Esgotou-se a bateria como a esperança depositada nos dias. E
os ponteiros parados são como nossos passos nunca dados: são os pés quedados,
inertes, das pessoas nas quais não me reconheço, que não se atrevem a ir pelas
mesmas ruas que não cabem os meus pés, aquelas nas quais não me reconheço.
Seriam os nossos dias os esboços de um roteiro de um
curta-metragem barato? Desses sem fins ou orçamento, sem direção, fadados ao
esquecimento?
Não! Não! Não há de ser só isso. Não há de ser só uma
imperfeição querendo deixar de existir, querendo transformar-se em novo, em
renovo.
Se eu não me reconheço nas ruas, nas pessoas no tempo e
se escrevo porque essa agonia a certa altura me corrói por dentro é porque nada
está no seu devido lugar. É porque muito ainda há de ser feito e com efeito.
Para que possamos assumir os nossos lugares enquanto personagens.
Se eu não me reconheço a cada manhã em que o dia vai
mal e se escrevo, me escrevo e lhe escrevo é porque achei guarida em seu peito.
E se consegue se reconhecer com a mesma dor que carrego em meu peito é porque
lá no fundo somos semelhantes. É porque as nossas almas são inquietas. São
inconformadas.
Devemos, então, assumir o posto. Riscar o fósforo e atear
o fogo! Se a estranheza é grande, que queime em uma fogueira bem longe, lá
pelos círculos de Dante. Se somos estranhos e nos reconhecemos, somos iguais! E
por isso nos unimos e é a isso que devemos o brilho de nossos olhos: é por
almejar dias melhores, por querer subir no palco da vida e rasgar as nossas
dores, sapatear nossas agonias, mastigar nossas solidões, responder nossas
questões.
Questões... O ponto de partida e de chegada de nossos
corações. O grande motivo real de nossas orações... Giramos o mundo em viagens
magníficas. Estudamos as ciências e refugiamo-nos na filosofia, mas do
sentimento, do sentimento do mundo, quem sabe somos nós mesmos. Quem sabe é
aquele que deita e não consegue dormir. Quem sabe é aquele que experimentou a
insônia ávido por mudanças. E é isso o que me tranquiliza.
O que me acalma e traz alento é saber que por mais que
eu me perca em pensamento, por mais que eu tenha tanta estranheza, há por aí
outros tantos como eu, que buscam o melhor de si, que não se cansam de sonhar e
que sabem que a mudança é uma semente resistente que vingará.
Hoje havia uma promessa de lua cheia, mas quem
transbordou não foi a lua ou o céu. Foi a vontade de mudar.
Dy Eiterer.
Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. Edylane é Edylane desde 20 de
novembro de 1984. Não ia ter esse nome, mas sua mãe, na última hora,
escreveu desse jeito, com "y", e disse que assim seria. Foi feito. Essa
mocinha que ama História, música e poesia hoje tem um príncipe só seu,
seu filho Heitor. Ela canta o dia todo, gosta de dançar - dança do
ventre - e escreve pra aliviar a alma. Ama a vida e não gosta de nada
morno, porque a vida deve ser intensa. Site:Dy Vagando
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