por Carol Almeida
Mensagens como "Não creia em tudo que lê" e
"Enterre sua TV" invadem muros de capitais como São Paulo, Belo Horizonte,
Brasília, Rio e Recife.
“Ninguém manda no que a rua diz”. Alguém que esteja um
pouco mais atento às imagens ao redor vai dar de cara com essa mensagem colada
nos tapumes em frente ao antigo cinema Belas Artes, próximo a uma das mais
movimentadas esquinas da cidade de São Paulo. A frase está espalhada também em
paredes e muros de outras metrópoles do país, como Brasília, Rio de Janeiro,
Belo Horizonte, Porto Alegre e São Paulo. E ela resume bem um movimento que, se
não é novo, se tornou bastante intenso de três anos para cá e explodiu
definitivamente em 2013: as interferências de poesias urbanas em espaços pouco
dados à reflexão e mais propensos à velocidade e automação do cotidiano.
“É o instante de desvio, é quando no meio daquela
loucura das grandes cidades você tem uma pausa para reencontrar você mesmo”,
explica Patricia Bagniewski, poeta e integrante do grupo Transverso, que atua
mais regularmente nas cidades de Brasília e Rio de Janeiro, com manifestações
também em capitais como São Paulo.
É do Transverso a autoria da frase acima e de tantas
outras como “Não creia em tudo que lê” ou “Seguro Morreu de Tédio”,
reproduzidas sempre em espaços coletivos, ao alcance dos olhos de quem costuma
ser pego de surpresa por essas breves cápsulas de sabedoria urbana.
“No Brasil, talvez esse aumento quantitativo de
intervenções com textos se dê também em função desses megaeventos que o país
está recebendo e que têm transformado as cidades de maneira muito rápida. Esse
trabalhos na rua são movimentos de contraposição a tudo isso. E é como se
traduz visualmente e discursivamente a experiência urbana e a polifonia das
cidades hoje”, opina Carlos Queiroz, geógrafo e coordenador de um grupo de pesquisa
sobre poéticas urbanas na Universidade Federal do Espírito Santo.
Obra do Poro
“A vontade de dar esse tempo mais humano e mais
orgânico às ruas é uma demanda que existe desde o começo do processo de
industrialização das cidades”, contextualiza Sérgio Miguel Franco, sociólogo
que investiga as manifestações de street art no Brasil.
“A rua tem um potencial incrível de comunicação. E por
mais que a internet facilite nosso contato virtual com o mundo, a demanda pelo
contato real ainda é maior e é a rua quem dará essa experiência. É nesse espaço
que acontecem as transformações efetivas. Exemplo recente foram as
manifestações de junho. Qualquer artista que queira levantar discussões críticas
hoje precisa estar na rua em algum momento”, diz. Sobre o encaixe dessas
poéticas urbanas na caixinha da street art, Sérgio afirma que ainda é cedo para
avaliar se isso faz parte desse segmento das artes visuais.
Poesia marginal
Distante do grafite em proposta estética, essa
manifestação verbal tem herança forte em ações bem anteriores como a poesia
marginal e formalmente é uma espécie de filha das gravuras nas artes plásticas
(pelo aspecto da reprodução de uma mesma matriz). Não deixa também de ser um
prolongamento natural de trabalhos de décadas passadas que colocaram na mesma
panela ativismo, arte e poesia, sendo alguns de seus expoentes Cildo Meireles,
Juan Brossa, Paulo Bruscky e Hélio Oiticica.
Hoje, essencialmente, a nova poética urbana nasce quase
sempre de uma necessidade de artistas ou mesmo de cidadãos sem grandes
pretensões em jogar nas ruas mensagens ou versos que desacelerem um pouco o
ritmo industrial com o qual as grandes metrópoles se acostumaram a viver.
“No meu caso, essa vontade começou depois que assisti
ao documentário do Banksy ("Exit Through the Gift Shop"). O filme me
serviu para desmistificar algumas coisas e a principal delas era a de que dava
para fazer coisas na rua sem necessariamente precisar ser artista”, revela o
jornalista Dafne Sampaio, autor de uma quadrinha bastante vista em paredes da
cidade de São Paulo, mas também já reproduzida em outras capitais como
Fortaleza e Recife: “Você Praça/Acho Graça/Você Prédio/Acho Tédio.”
Em comum com praticamente todos os trabalhos versados
que se espalham intensamente por esquinas, pontos de ônibus e postes, quase
sempre via lambe-lambes, stencils ou mesmo canetas-piloto, a iniciativa de Dafne
tem pelo menos quatro pontos: a acessibilidade (qualquer um pode colar suas
ideias nas ruas), a diluição da autoria (muitos dos trabalhos são feitos para
que sejam reapropriados pela população), o desapego financeiro (eles podem até
vir a ganhar dinheiro com isso, mas essa não é a intenção inicial) e,
principalmente, o debate que todos eles geram sobre a ocupação dos grandes
centros urbanos.
Espaço de respiro e crítica
“Nossas principais preocupações são discutir a cidade
em seus mais diversos contextos”, avalia Marcelo Terça-Nada, designer que, ao
lado da artista Brígida Campbell, faz parte do grupo Poro, bastante atuante em
Belo Horizonte.
“O nome ‘Poro’ tem a ver com isso. Porque o que criamos
são espaços de respiro no tecido urbano. O ambiente urbano é muito dominado
pelo discurso da publicidade, que detém a hegemonia do espaço simbólico. É como
se você estivesse criando pequenas rachaduras nessa hegemonia, um espaço de
crítica que não vai te vender nada”, resume ele, cujos trabalhos com Brígida
incluem intervenções como faixas espalhadas por BH onde se lia mensagens do
tipo “Perca Tempo”, “Veja Através” ou “Enterre sua TV”.
Cidade humanizada
Bem menos imperativa, a artista Laura Guimarães, autora
do projeto Microrroteiros da Cidade, que espalha poesias em lambe-lambes
coloridos por São Paulo descrevendo situações bastante triviais, garante que a
ideia de seu trabalho é tentar sempre “humanizar um pouco mais a cidade”.
“Meus primeiros trabalhos aconteceram quando rolou a
Lei do Cidade Limpa aqui em São Paulo. Não foi tão pensando para ser uma
resposta a isso, mas o fato é que aconteceu justamente nessa época. Tanto que,
no começo, eu colava e pintavam de cinza”, diz ela, se referindo à lei que
entrou em vigor em 2007 com o objetivo de banir a “poluição visual” da cidade
de São Paulo.
Sobre a política de proibições, Laura afirma que, fora
esses episódios no primeiro momento do Cidade Limpa, nunca teve problemas em
colar seus versos pela cidade. “Já aconteceu muito de policial me ver colando e
desviar o olho pra fingir que não viu. Não sei se é porque sou mulher ou se
porque são esses tipos de textos, mas até hoje só tive respostas boas.”
As respostas, aliás, são os fatores que possivelmente
mais estimulam esses novos poetas (dos) concretos. “No começo eu achava que
poderia publicar meu poemas em livros, mas depois me dei conta de que a rua é o
melhor lugar pra ter uma resposta mais direta do meu trabalho”, conta o jovem
poeta paulistano Base Luna que, no seu braço, tem tatuado um famoso verso de
Paulo Leminski espalhado pelas ruas de Curitiba nos anos 1980: “Palpite. O
grafite é o limite”.
Base, como é chamado pelos amigos, se diz produto de tudo
o que ele tem observado pelas cidades nos últimos anos. É confessadamente
inspirado no trabalho de Laura e, em um plano maior, não deixa também de ser
legatário de gente como Binho e sua Postesia (poemas grudados em postes), que
começou nos anos 1990, e do mais recente “terrorismo poético” dos lambe-lambes
de Maicknuclear.
Caminho sem volta
A profusão dessas mensagens tem sido tão presente e
urgente nas ruas que elas começam agora a dar corpo para iniciativas de
marketing que se apropriam de todos os elementos estéticos e formais dessas
iniciativas. Exemplo recente disso foram lambe-lambes espalhados por todo o
país com a frase "No futuro o amor e a liberdade serão como num
filme". Ainda que a colagem não tivesse assinatura, rapidamente parte da
população entendeu que se tratava de uma propaganda do filme
pernambucano Tatuagem.
Artista plástico com trabalho reconhecido por
importantes galerias, Mozart Fernandes garante que a rua lhe dá um retorno que
nenhum espaço privado poderia lhe entregar: “O legal da rua é que tem
tolerância pra todo mundo”. Autor de uma série de pinturas espalhadas pela
cidade de São Paulo com a legenda “Foda-me com Amor” (máxima, aliás, cravada em
sua aliança de casamento), ele é categórico em afirmar que essa explosão de
intervenções poéticas em espaços públicos é agora uma locomotiva sem freios.
“Esse é um caminho sem volta. Diante da verticalidade das cidades, as pessoas
precisam ver algo nessa linha do horizonte do olhar delas. E verão cada vez
mais”.
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