Kafka, um Autor Traído
por Alex Castro
Artigo publicado no site papo de homem
Existem vários mitos sobre Kafka. Um deles é que ele
nunca publicou nada em vida e o outro, que pediu ao seu melhor amigo que
queimasse toda sua obra.
Errado e errado.
Algumas das melhores obras de Kafka foram publicadas
ainda em vida, como A Metamorfose, Um Médico Rural, O Veredito e Na Colônia
Penal. Sua outra obra-prima, Um Artista da Fome, teve suas provas revisadas por
ele em seu leito de morte e saiu pouco depois.
E ele pediu ao seu melhor amigo, Max Brod, que queimasse
apenas seus papeis pessoais e obras incompletas, que não estavam à altura do
seu padrão de qualidade, como O Processo, O Castelo e O Desaparecido (Amerika).
Pessoalmente, acho Max Brod um canalha que deveria
arder no mármore do inferno, mas há discordâncias. Argumentam alguns: será que
somente a obra publicada de Kafka teria sido o bastante para impulsionar seu
nome? Em outras palavras, estaríamos falando de Kafka, se não fosse a traição
de Brod?
A minha pergunta é outra: e daí? Então quer dizer que o
sucesso da traição perdoa o traidor? Max Brod é menos canalha porque sua
traição foi abençoada pela posteridade?
Só Na Colônia Penal, Um Artista da Fome e Um Médico
Rural já seriam mais que suficientes para garantir o nome de Kafka.
A Traição de Max Brod
Max Brod se defendeu das acusações de traição dizendo o
seguinte: Franz sabia que eu idolatrava qualquer palavra que saísse dele, que
eu jamais poderia queimar nada que tivesse escrito. Eu lhe disse isso diversas
vezes. Se ele quisesse realmente queimar tudo, teria pedido a outra pessoa, não
à única que ele sabia que não iria atender seus pedidos.
Na verdade, a defesa mais aceita de Max Brod é a
seguinte: ele traiu seu melhor amigo em nosso nome. A humanidade merecia ler O
Castelo e O Processo. Ele já conhecia ambos os livros – Kafka costumava lê-los
para seus conhecidos – e não suportou a idéia de essas obras morrerem com seu
autor. Em troca de uma perigosa abstração – a humanidade – traiu algo real e
concreto, o último desejo de seu melhor amigo.
Já eu acredito que todo o mal do mundo emana de pessoas
que querem salvar a humanidade, que colocam seus ideais abstratos e fugazes
sobre realidades concretas como nosso amor por nossa família nossos amigos,
nosso bairro.
Posturas como a de Brod possibilitaram os maiores
massacres e genocídios da história: o padeiro francês que entregou o amigo
aristocrata aos jacobinos, o menino que denunciou que sua família criticou o
füher, o marxista que admite que o paredón cubano é necessário para a
consolidação do regime, todos são Max Brods.
Para salvar a humanidade, todos entregariam seu amigo
ao carrasco.
O que mais me assusta é que a maioria das pessoas apóia
Max Brod sem reservas. Dizem: como poderíamos viver sem O Castelo e O Processo?
Viveríamos muito bem, obrigado.
Max Brod não conhecia a humanidade. A humanidade é
grande demais pra se conhecer. Mas Max Brod conhecia Franz Kafka. Max Brod
tinha olhado nos olhos de Kafka, pego em sua mão, conhecido sua família. Max
Brod sabia da timidez patológica de Kafka.
O Castelo e O Processo quase dá pra engolir. Afinal,
são realmente obras fundamentais, que mudaram a literatura pra sempre, blá blá
blá – não que Max Brod pudessem quantificar isso naquele momento, claro.
Mas nada justifica a publicação de papéis pessoais,
como Carta ao Pai, por exemplo, uma carta que Kafka escreveu ao seu pai mas, de
tão tímido que era, nunca teve coragem de enviar, uma carta que hoje qualquer
um compra no Submarino por R$19,50 na edição da Companhia das Letras.
Kafka não pediu a destruição de suas cartas e romances
inacabados para que não fossem publicados. Provavelmente, isso nem passava por
sua cabeça. Kafka pediu que fossem destruídos porque eram documentos pessoais
seus, que não diziam respeito à mais ninguém – e, com certeza, não à humanidade
como um todo.
Se um autor não tiver direito de queimar um romance
inacabado com o qual ele não está satisfeito, quem tem? Não será essa a
prerrogativa mínima do artista? Decidir quando, onde e como divulgar sua obra?
Ou não divulgar?
Não acredito em inferno mas, se houver, Max Brod está
lá.
“E por que Kafka não queimou tudo ele mesmo?”
Pensem na dinâmica concreta da situação.
Era pra ele ter feito o que? Ficar carregando nas
costas todos os manuscritos que quisesse destruir, mantendo-os sempre a mão,
com um isqueiro de prontidão para quando ele sentisse a morte chegando? Como é
que se adivinha a hora da morte?
Kafka não queria destruir seus trabalhos porque eram
ruins, mas porque estavam incompletos, disformes e ainda não revisados. Ele
ainda não tinha desistido deles e, periodicamente, retrabalhava O Processo, O
Castelo e O Desaparecido (Amerika). Não faria sentido destruí-los nem se
tivesse certeza da morte iminente. Jamais arriscaria voltar do coma e descobrir
que tinha queimado O Processo à toa.
Que se entenda: Kafka não queria simplesmente destruir
seus trabalhos. Se fosse só isso, ele realmente os teria destruído. Mas o que
ele não queria era que fossem lidos em sua forma incompleta e abaixo do seu
padrão de qualidade.
Enquanto fosse vivo, poderia sempre trabalhar neles. A
partir do momento em que morresse, não haveria mais como melhorá-los seu senso
estético preferia que não fossem vistos jamais a serem vistos incompletos. Não
há decisão artística mais íntegra que essa.
Kafka morreu no exterior, em um hospital alemão, bem
longe de sua mesa de trabalho em Praga, sem acesso aos seus papéis. Podia
contar apenas com a lealdade de seu melhor amigo, Max Brod, para cumprir seu
último desejo.
E foi traído por Brod, que publicou até suas cartas
pessoais.
A opinião de Milan Kundera
Sobre as violências cometidas contra Kafka, não posso
recomendar outra coisa se não o excelente livro de Milan Kundera, Os
Testamentos Traídos. Acho que vocês já sabem qual foi o testamento que foi
traído, não é?
Em outro livro, A Arte do Romance, Kundera escreveu:
O romancista é aquele que, segundo Flaubert, quer
desaparecer atrás de sua obra, (…) renunciar ao papel de homem público. Não é
fácil hoje, quando tudo o que é muito ou pouco importante deve passar pelo
palco insuportavelmente iluminado dos mass media que, contrariamente à intenção
de Flaubert, fazem desaparecer a obra atrás da imagem de seu autor. Nessa
situação, da qual ninguém pode escapar inteiramente, a observação de Flaubert
me parece quase uma advertência: prestando-se ao papel de homem público, o
romancista põe em perigo sua obra que corre o risco de ser considerada como um
simples apêndice de seus gestos, de suas declarações, de seus pontos de vista.
O romancista desfaz a casa de sua vida para, com as pedras, construir a casa do
seu romance. Os biógrafos de um romancista desfazem portanto o que o romancista
fez, refazem o que ele desfez. O trabalho deles não pode esclarecer nem o valor
nem o sentido de um romance, apenas identificar alguns tijolos. No momento em
que Kafka atrai mais atenção do que Joseph K., o processo de morte póstuma de
Kafka se iniciou.
Concordo com Kundera e percebo que acabei de escrever
um longo texto sobre a vida de Kafka, sem nem tocar nas obras em si.
Faça o que eu digo mas não faça o que eu faço.
Alex Castro é. por enquanto. em breve, nem isso. //
todos os meus textos são rigorosamente ficcionais. // se gostou, mande um
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minhas palestras. e eu te agradeço.
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