Curitiba, cidade literária
Escritores e editores falam sobre a nova cena de
Curitiba, berço de grandes nomes, construída por redes de bibliotecas e centros
culturais e por uma movimentada comunidade de autores e leitores à margem do
eixo Rio-São Paulo
Por Leonardo Cazes
Quantas revistas literárias há na sua cidade? Uma?
Duas? Nenhuma? Pois Curitiba tem seis publicações em atividade, de diferentes
frequências e propostas: “Rascunho”, “Arte & Letra: Estórias”, “Jandique”,
“Relevo”, “Cândido” e “Mapa”. O número expressivo é reflexo de uma cena
literária que tem longa história e vive um dos seus melhores momentos, com o
relançamento em 2013 das obras de três ícones da geração anterior — Paulo
Leminski, Jamil Snege e Manoel Carlos Karam — e o florescimento de novas
editoras locais e de um circuito de eventos, feiras, prêmios e oficinas
literárias.
As revistas e jornais têm o papel de dar vazão à
produção literária local. A “Jandique” foi lançada em fevereiro do ano passado
e só publica textos inéditos de escritores curitibanos ou radicados na cidade.
Ela funciona como um radar do seu fundador, Otavio Linhares, que também é
responsável pelo selo Encrenca, voltado para a literatura experimental e que
lançou os seus três primeiros livros em 2013: “Pancrácio”, de Linhares; “Salvar
os pássaros”, de Luiz Felipe Leprevost; e “Réquiem para Dóris”, de Oneide
Diedrich.
— A revista é um veículo de busca. Como eu consigo
publicar seis, sete autores por número, consigo vasculhar melhor a cena e
buscar escritores para publicar na Encrenca, que é voltada para obras que sejam
experimentais de alguma maneira. Vejo que tem muita gente fazendo isso, mas não
tem como publicar esse tipo de literatura. A ideia de criar a editora veio das
dificuldades que eu e o Leprevost encontramos para publicar os nossos textos,
porque não há muito interesse dos grandes grupos — diz Linhares, lembrando que
a cidade sempre teve autores ligados à experimentação.
No século XIX, as primeiras revistas
Na dupla empreitada, o editor contou com a parceria de
dois amigos que há quase uma década tocam a Arte & Letra, editora e
livraria baseada em Curitiba. Os irmãos Frederico e Thiago Tizzot levaram a
experiência acumulada com a “Arte & Letra: Estórias”, criada em 2008 e que
publica textos de ficção e não-ficção inéditos ou há muito tempo fora de
circulação. Eles também estão à frente da “Mapa”, lançada em novembro, que
pretende discutir literatura com textos acessíveis ao público leigo e reproduzirá
conteúdo de grandes veículos internacionais, como o “The New York Review of
Books” e o suplemento literário do “The New York Times”.
A história das publicações literárias em Curitiba é
antiga. No fim do século XIX surgiram as primeiras, “Cenáculo”, de 1895, e
“Galáxia”, de 1897. Em 1946, Dalton Trevisan criou a “Joaquim”, considerada um
marco da influência modernista na cidade. Na virada das décadas de 1980 e 1990,
Wilson Bueno comandou o “Nicolau”, que publicou autores que se consagrariam pouco
tempo depois, como o amazonense Milton Hatoum. Em 2000, foi fundado o
“Rascunho” pelo jornalista e escritor Rogério Pereira, hoje o mais antigo
periódico dedicado ao tema em circulação na cidade.
Ao serem perguntados sobre as razões de uma tradição
literária tão forte na cidade, escritores, tradutores e editores convergem para
duas explicações, uma séria e outra bem-humorada: a introspecção das pessoas e
a falta de algo mais interessante para fazer.
— Eu digo que Curitiba é a cidade ideal para um
escritor. Como não há nada para fazer aqui, ficamos em casa escrevendo — brinca
Cristovão Tezza, em entrevista por e-mail. — A clássica introspecção
curitibana, a atmosfera solitária e vagamente hostil (segundo os que nos
visitam), uma certa tradição satírica e ferina, uma obsessão formal, a
referência poderosa de Dalton Trevisan (do ponto de vista literário e
existencial), tudo isso nos marcou muito. Curitiba é paradoxal: é um símbolo
urbano de vanguarda, criado pelas invenções bem-sucedidas de Jaime Lerner a
partir dos anos 1970, e ao mesmo tempo uma das cidades mais conservadoras do
Brasil.
Leminski também refletiu sobre as raízes da
personalidade curitibana, cidade que recebeu imigrantes de várias origens, mas
que não se misturaram efetivamente. No ensaio, “Sem sexo, neca de criação”,
publicado no livro “Ensaios e anseios crípticos” (Editora da Unicamp), ele
criticou o impacto negativo na criatividade de uma cultura repressiva.
“O complemento natural da mística imigrante do trabalho
é a mística da poupança, como a outra, grande inimiga da criatividade
artística. ‘Fazer economia’ é amealhar, reter, poupar. Assim se chega a uma
ideologia da poupança: guardar é superior a usufruir. Inteligente é poupar, não
o desfrutar. Freudianamente, Curitiba é a retenção das fezes. Nosso pecado é a
avareza. Ora, criar é esbanjar. Só por excessos se cria. Por uma exuberância”,
escreveu.
O cronista e contista Luís Henrique Pellanda,
colaborador dos jornais “Gazeta do Povo” e “Rascunho” e autor do livro “Asa de
sereia” (Arquipélago Editorial), retoma o texto do poeta, mas o lê numa chave
diferente.
— O curitibano não é um cara expansivo corporalmente,
mesmo o Leminski não era. Não dançamos, não temos festas populares nas ruas. O
clima sempre nos manteve dentro de casa. A maneira mais fácil de um jovem se
expressar é escrevendo — argumenta o cronista, que vê no momento atual a
resposta a uma “ressaca” sofrida por uma série de perdas no século XXI. — Entre
2003 e 2010 perdemos em sequência quatro nomes importantíssimos. Primeiro foi o
Jamil, de câncer, depois o Karam, também de câncer, o Valêncio Xavier e o
Wilson Bueno. Talvez agora haja uma espécie de resposta a essas perdas.
Parceria marca geração atual
Outro fator que favorece a cena é a proximidade física
entre autores, editores, livrarias e bibliotecas, onde todos estão sempre se
esbarrando e, entre um café e outro, surgem novos projetos. Poucas quadras
separam a Biblioteca Pública do Paraná (BPP), a sede do jornal “Rascunho”, a
livraria Arte & Letra, a Universidade Federal do Paraná (UFPR) e as casas
dos autores. Os frutos desses encontros chamam a atenção do tradutor e
professor da UFPR, Caetano W. Galindo.
— Além do surgimento de uma geração talentosa, tem o
fato de que eles se ajudam muito, talvez como parte de um espírito de internet.
A rede permite ficar visível mesmo estando fora do eixo e gera esse novo
espírito de colaboração. É algo muito diferente da minha geração — diz Galindo,
vencedor do Prêmio Paraná de Literatura 2013 na categoria contos, dedicado a
obras inéditas. A premiação dá R$ 40 mil aos vencedores de cada uma das três
categorias (contos, romance e poesia) e a obra é editada pela BPP com uma
tiragem de mil exemplares.
A biblioteca, dirigida por Rogério Pereira, do
“Rascunho”, é outro importante pilar da produção literária local. Além do
prêmio, a instituição tem uma intensa programação e edita o jornal “Cândido”.
Para março, a BPP planeja o lançamento de uma edição fac-similar de todas as 60
edições do “Nicolau”, dividida em três caixas, semelhante ao trabalho feito no
passado com a “Joaquim”.
— Temos um sistema de bibliotecas forte, bem organizado
na periferia. A Fundação Cultural de Curitiba mantêm as casas de leitura, que
promovem rodas de leitura e oficinas de criação literária. Isso gera uma
perspectiva de que novos escritores vão surgir — afirma Pereira.
Os sinais do bom momento não se restringem às revistas
e se reflete nos lançamentos de livros. Publicado no fim do ano passado, o
“Livro dos Novos” (Travessa dos Editores) reuniu contos de 16 autores de todo o
estado com mais de 20 e menos de 30 anos. No ano passado, Cezar Tripadalli
venceu o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura com o romance inédito “O
beijo de Schiller”, que será publicado em 2014 pela Arte & Letra. A Kafka
Edições, de Paulo Sandrini, outra editora local, planeja para 2014 uma coleção
de novos romancistas, entre eles Homero Gomes, curitibano que foi finalista do
Prêmio Sesc de Literatura em 2007.
O fortalecimento do mercado editorial na cidade,
historicamente frágil, permite a realização de projetos inimagináveis há pouco
tempo. Depois de reeditar duas obras de Manoel Carlos Karam no ano passado —
“Comendo bolacha maria no dia de são nunca” e “Pescoço ladeado por parafusos”
—, a Arte & Letra, dos irmãos Tizzot, vai publicar dois livros artesanais,
de tiragem limitada, com contos de Cristovão Tezza e Dalton Trevisan. Luiz
Ruffato é outro que também será editado no mesmo formato. A negociação com
Trevisan, famoso por ser um autor de difícil acesso, foi curiosa.
— Deixei uma carta e um livro de presente com o dono de
uma livraria que ele frequenta aqui em Curitiba. Tinha uma lenda de que se
deixasse lá, ele recebia e respondia. E era verdade. O engraçado é que ele
decide quando vai falar com você. Vamos publicar o livro e não tenho nem o
telefone dele — conta Frederico Tizzot. — Publicá-lo ilustra como a gente está
conseguindo formar essa rede de escritores, editores, jornalistas. Essa cena
está ganhando corpo e vamos lançar obras de nomes que normalmente saem por
grandes grupos do Rio e São Paulo.
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