vinicius e seu orfeu blackface [Ronald Augusto]
Nesse sentido, a intenção pretensamente generosa de, como escreve Vinicius no prefácio à peça, prestar “uma homenagem ao negro brasileiro” por “sua contribuição tão orgânica à cultura deste país – melhor, pelo seu apaixonante estilo de viver”, estilo que permitiu ao poeta “sem esforço, num simples relampejar do pensamento, sentir no divino músico da Trácia a natureza de um dos divinos músicos do morro carioca”; enfim, não obstante todas essas, por assim dizer, atenuantes de fundo, a intenção de “fazer justiça”, por meio da voz dramática, tem algo de patético, pois a conjunção intuída entre os divinos epítetos grego e negro se revela, ao fim e ao cabo, tão vincada de superstições e clicherias com relação ao seu objeto estético que acaba por obliterar a possibilidade efetiva de algum desvelamento a partir da recriação dos signos sincréticos, mitológicos e poético-musicais mobilizados na fatura da obra.
Evoco, por fim, uma confissão de Vinicius de Moraes que, de algum modo, faz menção aos seus esforços de olhar sua circunstância, seja intelectual, seja sociocultural, a partir de diversa perspectiva. Na advertência a Vinicius de Moraes – antologia poética, lê-se a seguinte confissão do autor a propósito da mudança apresentada em sua linguagem a partir da década de 1950 e que se opõe “ao transcendentalismo anterior”, revela o poeta que essa nova linguagem alcançada indica “a luta mantida pelo A. contra si mesmo no sentido de uma libertação (...) dos preconceitos e enjoamentos de sua classe e do seu meio, os quais tanto, e tão inutilmente, lhe angustiaram a formação”. Se dermos crédito à confissão de Vinicius de Moraes, podemos concluir que a peça Orfeu de Conceição está no bojo desse movimento de revisão crítica e recusa dos enjoamentos e interdições que informavam o poeta em seu processo de amadurecimento, seja na dimensão existencial, seja no aspecto da sua condição de artesão da arte da poesia. Vinicius de Moraes tentou um salto tigrino do tom elegíaco, entre metafísico e decadentista, para a concretude corporal do samba e seus filosofemas presentificados na superfície das palavras da canção popular. Em Orfeu da Conceição esse salto tigrino, essa ruptura com sua angústia de origem e formação, não se completa. É no seu cancioneiro que Vinicius de Moraes vai alcançar, mais tarde, os melhores resultados em função de tal mudança de rota.
Ronald Augusto
nasceu em 1961 no estado do Rio Grande do Sul. O escritor atua em
inúmeras áreas: é músico, letrista, ensaísta e possui ainda um trabalho
significativo no âmbito da literatura. Como poeta alcançou
expressividade no cenário nacional e até mesmo mundial, de tal forma que
suas produções foram publicados em revistas literárias, bem como em
antologias, dentre elas destacamos: A razão da Chama, organizada por
Oswaldo de Camargo (1986), a revista americana Callaloo: African
Brasilian Literature: a special issue EUA (1995), a revista alemã
Dichtungsring Zeitschrift für Literatur, e outras. 
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