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Frágeis e melindrados: o retrato da fofura 2.0 do filme "Ela" [Matheus Pichonelli]

Theodore, personagem de Joaquin Phoenix no filme "Ela"
Frágeis e melindrados: o retrato da fofura 2.0 do filme "Ela"

Theodore, personagem que se apaixona por uma voz no filme de Spike Jonze, é a alegoria dos adultos infantilizados: inseguros, hipersensíveis e apavorados


Entre todos os indicados ao Oscar de melhor filme em 2014, nenhum desperta tanto amor nem tanto ódio entre os fãs de cinema quanto Ela. Embora se trate de uma projeção de futuro, quase uma ficção científica, o filme de Spike Jonze é, entre os concorrentes, o que mais se aproxima da realidade do seu público. Para resumir, trata-se da história de Theodore (Joaquin Phoenix), um sujeito que ainda se recupera do trauma pós-separação, ao qual reluta em formalizar, e se descobre incapaz de se interessar por outras pessoas. Certo dia ele compra um aparelho cujo sistema operacional promete organizar a sua vida, emitir alertas sobre mensagens, catalogar o lixo eletrônico, sugerir o que fazer com todas as informações processadas e não processadas e ainda compor música para ele. Samantha, o tal sistema operacional, parece ter consciência própria e, diferentemente do que se espera dela, não tem voz de robô. Pelo contrário: ri, faz sorrir e ainda jura entender os sentimentos do usuário. Ela é programada para identificar tudo o que ele gosta, como um certo aplicativo capaz de mapear tudo o que o usuário "curte", e passa a tratá-lo como ele gostaria de ser tratado. É por essa voz, interpretada por Scarlett Johansson, que o personagem se apaixona.

A alegoria está definida: o humano que leva a vida mecanicamente cria afeição pelo robô que se parece com um ser humano. Um é a projeção do outro. A diferença é que um tem corpo e outro não tem. A partir daí uma série de perguntas dá pano para debates de alcance infinito. Todos com um ponto central: o que define um ser humano? É a sua capacidade de sentir? É a sua projeção física? É a certeza de sua finitude? É a sua capacidade de tomar decisões? É a sua capacidade de se relacionar com outros humanos?

Esses questionamentos parecem fazer sentido à medida que se olha ao redor. Ao fim da sessão, caminhei uns bons metros cinema afora sem olhar pra frente enquanto digitava no celular minhas primeiras impressões sobre o filme. Em dois minutos, já havia recebido oito “curtis” e dois comentários. Esses comentários deram início a um debate ao estilo “Ame-o ou deixe-o”. E se estendeu até tarde da noite, quando já estava deitado na cama. Antes, no caminho, perdi um ônibus no ponto porque me distrai ao escrever que Joaquin Phoenix estava a cara do Antonio Carlos Belchior.

No ponto de ônibus, aliás, à exceção de um casal mais empolgado, todos estavam em silêncio a olhar feito zumbis para seus aparelhos, eu inclusive. Uns, com fones de ouvido discretos, pareciam falar sozinhos. Outros gesticulavam com a cabeça ao som que vinha dos bolsos (não sou Theodore, mas senti fisicamente a falta do meu iPod quando o perdi em um ônibus interestadual. Cheguei a postar um RIP e desejar que ele se lembrasse de mim estivesse com quem estivesse).

Nas ruas, o que não faltavam eram sinais digitais para atestar que a alegoria de Spike Jonze estava materializada. Não por menos. Só no Brasil, existem hoje mais aparelhos de celular do que habitantes: 1,3 para cada um. Ao menos numericamente, as máquinas venceram.

Isso é preocupante? As placas de “não temos wi fi, conversem entre vocês” das portas dos cafés indicam que sim.

Mas é bom que se lembre novamente: o filme é uma alegoria, embora construída com elementos reais. Essa alegoria me permitiu visitar minha infância, quando ninguém sabia exatamente para que servia um computador e um tio me indicou: “um computador faz tudo o que você imagina e mais um pouco”. Cresci, assim, sonhando em ter um computador como quem espera a chegada de um amigo. Essa amizade, imaginava, me seria útil porque, com o computador, poderia contar tudo o que teria vergonha de relatar a pessoas de carne e osso, especialmente os adultos. Esperava de volta os melhores conselhos, inclusive escolares, profissionais e amorosos. Hoje, quando me vejo falando para uma câmera em uma reunião de trabalho a quilômetros dali, sinto que aquela projeção infantil se concretizou. Pura bobagem. No fim das contas, todos os meus aparelhos servem apenas como intermediários. Na outra ponta existem pessoas, ou serviços oferecidos por outras pessoas, e não máquinas a me dizer o que devo fazer ou o que eu quero ouvir. Algumas dessas pessoas eu jamais vou conhecer pessoalmente, mas isso também não seria garantido se elas morassem no apartamento ao lado: em carne e osso ou versão eletrônica, elas são apenas a projeção do que dizem querer ser, e esse é um recurso humano, não tecnológico. De perto, quase todas são bem menos interessantes do que suas sacadas postadas nas timeline alheias. De toda forma, a internet não gerou, mas facilitou, uma tendência natural: o agrupamento conforme gostos e referências. Os smartphones, como a tevê e o rádio, substituíram o silêncio, e não um diálogo pré-existente entre estranhos, seja no ônibus, seja na sala de jantar.

Voltemos ao filme. Ao longo da história, o protagonista que se abraça à máquina por ser incapaz de lidar com pessoas de verdade é o mesmo que sobrevive com um trabalho singular: escrever cartas de amor por encomenda. Na era da hiperconectividade, mostra o diretor, até os sentimentos podem ser terceirizados: quem assina as mensagens não precisa dizer o que sente, apenas jurar sentir o que disse. (As correntes de mensagens melosas ou motivacionais de Facebook, na maioria jamais escrita pelos autores aos quais as frases são atribuídas, parecem confirmar o delírio. Não é preciso dizer nada original: basta compartilhar o que está dito e acrescentar a hashtag “fato”). As máquinas, portanto, são programadas não para aprimorar a capacidade de comunicação dos personagens, mas para minimizar a incapacidade de se relacionar com gente viva, esteja ela ou não por trás dos aparelhos.

Essa incapacidade humana faz do filme um drama sobre uma realidade assustadora. Não é romântico nem belo nem sensível, como estranhamente muitos entenderam e se identificaram. Theodore é a cara cuspida e escarrada daquilo que tememos, ou deveríamos temer, nos transformar. É o resultado de uma geração superpreparada e hiperconectada, mas carente, frustrada, insegura, desnorteada, amedrontada e hipersensível em relação aos próprios dilemas. Uma geração que espana na hora de ceder ou tomar uma decisão. Que cresceu ouvindo que é especial demais e que todos estão morrendo de curiosidade para saber o que ela pensa do mundo e o que sente de verdade. Que, ao saber que ao seu redor as pessoas estão ocupadas com outros planos, chora sob o guarda-chuva dos incompreendidos. E se distrai por horas na frente do videogame ou jogando poker com uma máquina para não lidar com ela mesma. Como Theodore, ninguém na vida real tem a numeração exata dos seus sonhos. (Certa vez um sujeito me disse que tinha dificuldade em se relacionar com as meninas da classe, mas isso não era problema, já que a única pessoa por quem se interessava de verdade era a Chun-Li, a lutadora chinesa do jogo Street Fighter).

Theodore, portanto, não é vítima de um mundo que escapou do seu controle. É só um ursinho de pelúcia com cara de abandono à espera de atenção. E que parece dizer com os olhos o tempo todo: não fale alto comigo, se não eu quebro. Essa atenção é oferecida por uma espécie de alter ego: a máquina programada para bajulá-lo. À saída, me perguntava o que Theodore fazia quando a ex-mulher tinha febre ou passava por algum perrengue: corria para a farmácia, jogava videogame com o seu Tamagoshy ou se abraçava ao lençol para chorar?

Em uma das cenas, uma das poucas amigas reais de Theodore conta às lágrimas por que terminou com o namorado, um sujeito implicante e cheio de lições a ensinar a todo mundo o tempo todo: ele criticou a disposição dos seus sapatos na entrada do quarto. É o resumo de uma realidade melancólica: acertamos no atacado, erramos no varejo. A overdose de informação nos conectou a um mundo de distância encurtada, mas ainda tropeçamos nas nossas próprias afetações, displicências e implicações. E nos tornamos ilhas cercadas de bajulação o tempo todo: conectados, mas sozinhos. Daí o encanto de Theodore com a voz que lhe acorda para dar bom dia: ela não têm passado, não tem corpo, não ocupa espaço e compreende a sua incompreensão. O que mais se pode esperar de uma relação?

Tudo, menos a essência. 

Fonte: 
Carta Capital

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