Fragmentos de uma
romancista
Novo romance de Carola
Saavedra é construído em duas partes que podem ser lidas como novelas
Houve uma época em que o
mesmíssimo jornal que você está lendo possuía uma coluna escrita por Carola
Saavedra. De janeiro a dezembro de 2012, pudemos acompanhar o pensamento da
escritora em oito textos — eram tristes os meses em que não se encontrava nada
dela. Se não gostasse tanto das facilidades de busca na internet — cada um dos
oito está à distância de um clique —, eu provavelmente teria guardado os
recortes dobrados em um lugar precioso. Talvez guardasse na caixa da edição de
luxo Calvin & Haroldo — sim, um bom lugar este.
(Aliás, se você estiver
lendo a edição virtual do Rascunho, não vejo mal algum se resolver abandonar o
texto deste resenhista e passar à leitura de Do exótico e outros encantos,
Bestiários, A esfinge diante do próprio enigma, A volta dos que foram, O
artista enquanto Künstler, Arte: modos de usar, O fantasma da literatura
feminina e/ou O tempo da escrita. Torço para que os títulos possuam links e
facilitem o abandono: vai valer a pena. Se quiser, volte depois.)
Foi assim que a conheci
melhor. E, depois de vê-la num bate-papo literário com José Eduardo Agualusa
(eu me dividia entre anotar o que diziam e desenhá-la no moleskine), percebi
que suas colunas não me eram suficientes, que precisava (sim, precisava) ler os
romances da escritora.
Obedeci à ordem
cronológica e li Toda terça e, logo depois, Flores azuis. A sensação geral foi
a de “por que eu demorei tanto para ler esses romances?” e minhas impressões
sobre ambas as obras foram registradas — tanto no Posfácio quanto n’o leitor
comum, meu blog pessoal — em um texto de uma série alcunhada Desafio autoras de
literatura contemporânea brasileira, em 2012.
Ainda no mesmo ano, o
Fragmento de um romance de Carola Saavedra foi publicado no nono volume da
revista Granta em português — sim, justo o que listou vinte autores como os
melhores jovens escritores brasileiros. Apesar do título, o texto não parecia
realmente um excerto de romance, principalmente por haver uma espécie de
política de identificação nestes casos: informava-se, por exemplo, que Apneia,
de Daniel Galera, Faíscas, de Carol Bensimon, Noites de alface, de Vanessa
Barbara, e F para Welles, de Antônio Xerxenesky, faziam parte de romances
vindouros dos escritores.
Mas talvez o “romance” do
título de Saavedra não definisse uma narrativa longa. Talvez fosse apenas uma
referência de que o conto seria o que deu para fazer em matéria de “história de
amor”: nem tudo o que nos instiga a ponto de querermos ler mais e mais páginas
a respeito necessita de mais e mais páginas. O conto — em sendo o caso —
apresenta o leitor a recorrências na leitura da autora, como o espaço dado à
incompreensão (que torna o leitor ainda mais importante na criação de sentidos)
e a relação entre amor e violência, e nisso reside boa parte de seu mérito.
Dois anos depois, o novo
romance de Carola Saavedra chega às livrarias: O inventário das coisas
ausentes. A curiosidade de ver se o Fragmento de um romance era um fragmento
deste romance é menor do que o TOC: era necessário que lesse antes Paisagem com
dromedário, que se completasse a “trilogia em que a imaginação de um porvir
afetivo é construída com memórias de um passado incômodo, capaz de contornar um
presente hostil, no caso, o do relato”, segundo a professora Maria Fernanda
Garbero de Aragão.
A narradora faz questão de
que saibamos que aquele é um papo informal e íntimo, um monólogo despretensioso
feito na presença de um gravador, uma espécie de conversa, cheia de traços da
oralidade, dela com o leitor — não algo montado para ser exposto numa galeria
de arte. Mas estamos lendo um romance. De modo semelhante, a escritora já tinha
tornado outros momentos de intimidade — sessões de terapia, cartas — em obra de
arte sujeita ao escrutínio de um público — apenas deu um passo além em seu
terceiro romance.
Depois de ler Paisagem com
dromedário, a sensação habitual de “por que eu demorei tanto para ler esse
romance?” passou por aqui mais uma vez, sendo imediatamente substituída pela do
“não acredito que estou prestes a ler um romance novinho em folha da Carola”.
(Sei que é meio bobo se
empolgar assim, mas também sei que a sensação não poderia ser melhor,
especialmente quando se aprende a não ligar para o povo do distanciamento
crítico.)
O livro é dividido em duas
partes: a primeira é intitulada Caderno de anotações — a epígrafe que a
antecede é de Max Frisch: “Todo mundo, mais cedo ou mais tarde, inventa uma
história que acredita ser sua vida.”; e, a segunda, é denominada Ficção — cuja
epígrafe é de Lucian Freud: “Everything is autobiographical, and everything is
a portrait, even if it’s only a chair”. Uma pista, provável, de como embate
entre ficção e não ficção seria o principal interesse da obra.
Mas nos adiantamos. Quando
“A história começa a se delinear”, uma história que não tem muito de linear —
desculpe o trocadilho pobre — já nos encontramos com Nina, que foi ensinada a
jogar xadrez aos cinco anos de idade como parte da educação profilática dada
por seu pai, educação cujo objetivo era o de evitar a “clara tendência
[feminina] à loucura e a todo tipo de irracionalidade — muito estudo e muitos
exercícios físicos envolvidos. É essa a Nina que conversa, na faculdade, com o
narrador — que escreve em seu caderno — e confessa:
sempre gostei de pessoas
sentadas num banco, sozinhas, escrevendo ou desenhando, são a impressão de que
se bastam, apenas elas e o caderno. São pessoas que não precisam de ninguém,
ninguém que as entretenha, ninguém que lhes faça um agrado, ou lhes diga alto
triste ou surpreendente.
“A história começa a se
delinear. Será uma história de família.” Os fragmentos da primeira parte do
romance, as anotações de um caderno, lembram uma frase dum personagem de
Esquilos de Pavlov, de Laura Erber, que diz: “não existe história individual,
mas sim uma série de histórias paralelas”. Acompanhamos diversas gerações,
necessárias à existência de Nina, como se fossem simultâneas e paralelas, e
nelas vemos o conceito de amor — “então o amor é isso”, “assim deve ser o amor”
— muito próximo ao da violência, como em romances anteriores da autora — em
especial, Flores azuis.
Ao passarmos à segunda
parte, há alguma expectativa de, nela, vermos o romance criado pelo narrador, o
resultado de tantas notas. E, talvez, seja exatamente isto o que encontramos:
só não parece. Isso porque, apesar de também haver um pai e uma educação
rígida, o protagonista de Ficção é outro: o próprio narrador. Seu pai,
moribundo, o chama para uma última conversa, revivendo traumas antigos no
filho. Nina ainda aparece pontualmente e serve de contraste ao narrador, mas a
segunda parte é outro tipo de história de família: é uma carta ao pai. Como de
costume, lembrei-me de Kafka e fiquei apreensivo com a possível comparação.
Saavedra, no entanto, tem talento suficiente para não empalidecer diante do
clássico.
Há entre as duas partes
alguns elementos de ligação — nomes citados, personagens, diários —, mas ambas
poderiam ser lidas como novelas, separadamente, sem muito prejuízo. No entanto,
os títulos criam uma armadilha e instigam aquele leitor dado a investigações a
procurar, na primeira parte, marcas e pistas menos óbvias do que é descrito na
segunda — uma característica recorrente, por exemplo, na primeira fase da obra
romanesca de Bernardo Carvalho. Ficam as perguntas: Qual seria realmente o
caderno de anotações e qual seria a ficção escrita pelo narrador-escritor?
Quais seriam as influências de uma parte na outra?
Só há uma forma de
descobrir (isto é, se houvesse alguma possibilidade de certeza em se tratando
de literatura): relendo e conjeturando. Em meio a tantas leituras que mal
conseguem ser iniciadas, é bom encontrar um livro contemporâneo que releria de
bom grado.
ARTHUR TERTULIANO
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