Pequenos movimentos das coragens nossas de cada dia
Graça Taguti
Especial para o Jornal Opção
A premência de atos de coragem se manifesta em nossas
vidas desde o instante do nascimento. Ambos, o bebe e sua mãe, precisam de
imensa determinação e desejo, para trocar, abandonar um ambiente aquoso, seguro
e acalentador pela vinda à luz na terra dos homens.
Mudar de hábitos, largar ambientes mornos por outros
desconhecidos — ainda que anunciem o bônus de certa prosperidade, demanda
entrega e decisão.
Mergulhar na névoa, nas ondas escuras e geladas de
viagens solitárias são ações que acarretam desvendamentos, nem sempre doces de
fatias do nosso psiquismo.
Coragem para se enxergar em carne-viva, sem
escamoteações quaisquer. Detectar o medo lá dentro de suas caixas fechadas, as
defesas algemadas na garganta e crispadas nas mãos trêmulas de dúvidas.
Ter a ousadia de convocar os diabos e demais anjos da
maldade a se reunirem conosco, intimando-os a revelar seus fétidos estratagemas
de demolição da alegria e paz, nossa e alheias.
Arrancar o amor, entranhado à língua, levando-o às
palavras. Uma confissão de bem, um ramalhete de flores para quem nos cerca a
toda hora de atenções e delicadezas.
Ter coragem, como insígnia da bravura eleita, é trocar
as infinitas mortes cotidianas por sobressaltos verdes, vermelhos, lilases.
Gargalhadas soltas e úmidas, prontas a invadir cenários de vento e a se
refestelarem, displicentes, ao ar livre.
Coragem para ser feliz. Como sonegamos de nós essa tal
felicidade, como se ela não nos fosse devida, um bem legítimo, herdado dos
céus. Também poderemos estendê-la à solidariedade macia, móvel e atenta ao
entorno, evoluindo em um balé glorioso, pelos arcos planetários.
Coragem carimbada nas mínimas escolhas. Levantar os
olhos do celular, guardar o tablet em uma gaveta, o notebook na mesa do quarto
e, então, partir para trocar dois dedos de prosa com a revoada de andorinhas
que se exibem diante de nossas janelas.
São tantas e multifacetadas coragens de que carecemos
nos pequenos e grandes movimentos que compõem a partitura nossa de cada dia,
com suas melodias assíncronas, que nos faltam indumentárias apropriadas.
Abraçar o doente, o bêbado, o paciente terminal e lhe oferecer água e mel, a
ternura mais fresca da alma, introduzindo-a neste quadro de dores e discretas
bênçãos.
Coragem para se dizer o que sente. Sem eufemismos,
perfumes de toucador ou maquiagens pesadas por acúmulos de autoenganos.
Perdoar, ou pelo menos buscar esquecer, quem nos odeia ou inveja- nossos
traiçoeiros inimigos, vigilantes do alto das coxias, desde o palco em que nos
apresentamos à sociedade — essa gestora de ferro. Implacável julgadora de
direitos e deveres dos homens.
Um misto de coragem, humildade e tolerância consiste em
receber sem discórdias a presença de noites sem lua. Aristóteles sentenciava:
“A coragem é a primeira das qualidades humanas porque garante todas as outras”.
Sem coragem, deslizamos sobre o mundo como vermes na
pele de pessoas apáticas e sem rumo. Repetimos rituais de convivência sem questioná-los.
Repudiamos as sementes da boa nova, em várias nuances de nossa esgarçada
existência.
Anaïs Nin, libertária escritora, apregoava “a vida
contrai-se e expande-se proporcionalmente à coragem do indivíduo”.
Na maior parte do nosso espremido tempo, pulsamos
encolhidos em conchas, torres prisioneiras de castelos em cujas masmorras
apodrecemos desejos, energias, prenúncios de gestos fecundos.
Shakespeare sublinhava “os covardes morrem muitas vezes
antes de sua verdadeira morte; os valentes provam a morte só uma vez”.
Por fim, há algo inevitável nos pequenos movimentos das
coragens nossas de cada dia. Olhar nos olhos da morte. Encará-la de perto,
aceitando seu convite para enfrentá-la em mais um combate. Aqui, viver ou
morrer não está em questão. Lutar é o que importa.
Graça Taguti é escritora.
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