Da
estrada e sobre ela
Então pensei, “finalmente,
vou cair na estrada”. Desconfiava que Tina não viria comigo.
O difícil seria deixar a
máquina de escrever,
Além de descumprir as
promessas que havia feito a mulher debaixo de uma cachoeira gelada.
Comigo carregaria
incertezas e um desejo colossal de partir.
Carregaria também duas
lembranças: os lábios de Tina adornados por borboletas e a cerração que
escondia a sua silhueta em noites felizes, mas intempestivas, de altas doses
etílicas.
As recordações pareciam
navalhas, e um pedido singelo por permanência.
Daí, imaginei se todo esse
desejo pelo mundo não fosse fuga disfarçada de aventura.
Poderia criar vivendo e
viver ali criando. Uma caneta, uma máquina de escrever, um notebook, ela e eu.
Viver criando...
Há dias que o cinza é mais
forte, quando o frio vem e um medo ligeiro e gigantesco prega-me na cama, ao
lado de Tina, e transforma aquele espaço em paraíso.
Outros dias, vermelhos, a
sensação é igual, só que de uma intensidade que transborda em meus olhos o
reflexo de vê-la sorrir diante do divertimento e da espera.
Em dias azuis há o chamado
do mundo, e pular no abismo é uma das maiores seduções nesses dias.
Quando paro e penso nisso,
vejo que o desconhecido é o que está ali próximo.
Há uma mulher que se
recria todos os dias e uma máquina de escrever que pode ajudar a tornar
vivências experiências literárias.
E as invenções noturnas
confirmadas como realidades sublimes lá estariam, como sempre estiveram.
E logo contos se
avolumaram, até o dia do esgotamento mental e da preguiça criativa.
Então, um dia, quando
olhava pela janela o despertar da manhã mais aprazível do século, Tina se
virou, observou meu silêncio, e disse, “Vamos colocar o pé na estrada”.
Meus olhos sorriram e
conclui, “Aí está, dois viajantes na tempestade chamada vida”.
E ela sorriu. Um sorriso
que anunciava, em igual ressonância, a calmaria e o vendaval.
Pé na estrada. E, em um
dia qualquer, a volta.
Wuldson Marcelo é mestre
em Estudos de Cultura Contemporânea e graduado em Filosofia (ambos pela UFMT).
É revisor de textos, autor do livro de contos “Subterfúgios Urbanos” (Editora
Multifoco, 2013) e um dos organizadores da coletânea “Beatniks, malditos e
marginais em Cuiabá: literatura na Cidade Verde” (Editora Multifoco, 2013).
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