Felicidade Conjugal, de
Lev Tolstói: os ciclos da paixão
por Mônica Montone
Artigo publicado no site Obvious
Publicada em 1859,
Felicidade Conjugal, de Lev Tolstói, descreve com precisão os ciclos da paixão
e seu trágico declínio.
Grandes amores quase
sempre vêm acompanhados de grandes tragédias. Pelo menos na boa literatura, no
bom cinema, no bom folhetim exibido semanalmente na TV.
Geralmente os pombinhos
são separados pelo rei, pela irmã malvada, pela classe social, por traições,
guerra, morte; pela amante, pela tia chantagista e por aí vai.
A impossibilidade de viver
o amor é o que parece torná-lo eterno.
Os amantes sofrem. Alguns
enlouquecem. Outros se casam, mas não esquecem jamais “o grande amor”.
Porém há, também, um tipo
de tragédia amorosa tão dolorosa quanto a separação involuntária: o fim do
amor.
Perceber, admitir,
conceber a ideia de que o amor não dói como antes, não rouba o ar, não alegra
na presença nem entristece na ausência é tão (se não mais) trágico quanto ser
impedido de amar.
Na novela Felicidade
Conjugal, de Lev Tolstói (tradução de Boris Schnaiderman, Editora 34),
acompanhamos a decadência não de um casal, mas de uma paixão, que surgiu fresca
como a relva, cheia de promessas, palpitações e rubores, e termina feito a
febre, como diz Stendhal em seu livro Do Amor: “O amor é como a febre, nasce e
morre sem que a vontade venha a representar o menor papel”.
Diferentemente dos demais
livros do autor – que envolvem questões ético-religiosas – em Felicidade
Conjugal Tolstói se ocupa em nos apresentar o que poderíamos chamar de “ciclo
da paixão”.
Descreve com precisão,
através da personagem Mária Aleksândrovna, a deliciosa ilusão da simbiose dos
primeiros momentos:
“Eu sabia que ele me amava
(...), tinha em alto preço este amor, e, sentindo que ele me considerava como a
melhor das moças no mundo, não podia deixar de desejar que esta mentira
permanecesse nele. E, involuntariamente, eu o enganava. Mas enganando-o, eu própria
me tornava melhor”.
Em outro trecho:
“Mas eu pensava nele agora
de modo completamente diverso daquela noite em que soubera pela primeira vez
que o amava, eu pensava nele como em mim mesma, ligando-o sem querer a cada
pensamento sobre meu futuro (...), tinha a impressão de que, em dois, seríamos
tão infinita e tranquilamente felizes”.
O que vem depois? O
sentimento de posse e ciúmes que aos poucos começa a roer os ossos. A dúvida
sobre a qualidade do afeto do outro. Vontades contrárias. Expectativas não
partilhadas.
Quando Mária Aleksândrovna
se percebe independente, com vontades próprias e demandas particulares, quando
ambos se dão conta de que não são “um”, sentem-se traídos um pelo outro.
O resultado dessa traição
tácita é o afastamento e por fim... o fim da paixão.
“Pela primeira vez,
lembrei vivamente nossos primeiros tempos na aldeia, os nossos projetos, pela
primeira vez surgiu-me na cabeça a pergunta: quais foram, afinal, as alegrias
dele no decorrer de todo esse tempo? E me senti culpada perante ele. ‘Mas por
que ele não me deteve, por que foi insincero comigo, por que evitou
explicações, por que me ofendeu? - perguntei a mim mesma – Por que não utilizou
sobre mim o poderio do seu amor? Ou não me amava’?”
Tentando buscar
explicações para o fim, o amante Sierguiéi Mikháilitch argumenta:
“Eu lamento, eu choro
aquele amor passado, que não existe nem pode existir mais. Quem é culpado
disso? Não sei. Sobrou o amor, mas não aquele, sobrou o seu lugar, mas o amor
ficou totalmente dolorido, não tem mais força nem suculência, ficaram as
recordações e a gratidão, mas”...
Publicada em 1859,
inspirada nas relações pessoais de Tolstói com V. V. Arsiênieva – moça com quem
viveu uma história de amor antes de seu casamento – e considerada pelo próprio
autor como “uma ignomínia vergonhosa”, Felicidade Conjugal nos faz crer em suas
119 páginas que não apenas Romeu e Julieta foram vítimas de uma tragédia
amorosa, mas também Mária Aleksândrovna e Sierguiéi Mikháilitch, que viram o
amor-paixão nascer e morrer, pois um amor que morre ante nossos olhos é como um
natimorto: quase impossível de enterrar.
(imagem: google)
Mônica Montone é
escritora, autora dos livros Mulher de minutos, Sexo, champanhe e tchau e A
louca do castelo. .
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