Jogando com Julio
Por André Bonani
Artigo publicado no site Musa na Mesa
Na correnteza voraz de
2014, duas datas específicas se destacam dentre todas as outras por conta da
simbologia que carregam para a história da literatura, particularmente para a
biografia de nossa literatura latino-americana: 12 de fevereiro e 26 de agosto.
São, respectivamente, os dias que marcam 30 anos da morte e 100 anos do
nascimento de Julio Cortázar, um dos mais significativos expoentes literários
do século XX, responsável por alçar vertiginosamente, junto a demais mestres
como Jorge Luis Borges, Gabriel García Márquez e Pablo Neruda, a América Latina
a um recinto privilegiado no panteão das letras universais. Suas muitas
incursões no fino trato verbal protagonizaram e ainda protagonizam com
desmedida frequência instantes de prazer, espanto, humor e profunda ressonância
nos leitores que atingem.
Mas que tipo de reflexão
podemos moldar partindo das múltiplas máscaras ostentadas por Cortázar no
decorrer de sua fecunda produção? Ecoantes e raros, seus textos percorrem já há
muitos anos o desenvolvimento humano de diversos indivíduos, gerando declarações
exaltantes como a do escritor chileno Alejandro Zambra, expoente da nova
literatura latino-americana, segundo o qual “nos contos de Cortázar se formou o
gosto de minha geração (…)”.
É nessa permanente
atualidade do trabalho de Cortázar, nessa latência atemporal de seus escritos,
que reside o caráter vital da longevidade de sua contribuição literária. Em
seus contos, romances, ensaios e poemas circula uma vibração telúrica, sincera
e extremamente generosa, uma energia depurada que sequestra momentaneamente o
leitor para subitamente deixá-lo um passo mais próximo de si mesmo. Perpassando
diferentes gerações, instalando-se com conforto nas mais variadas consciências,
a obra de Cortázar figura para muitos não só como um elegante e insólito portão
de entrada ao mundo da literatura, mas também como uma aconchegante sala de
estar que se pode revisitar indefinidamente por toda a vida.
Foi graças a Cortázar,
como afirma o peruano Mario Vargas-Llosa, seu amigo íntimo e parceiro de
ofício, que “aprendemos que escrever era uma maneira genial de divertir-se.”
Essa ludicidade na entrega ao fazer literário, essa espécie de libertação
consciente do excesso de convenções e seriedade, confere aos textos de Julio
uma experiência inigualável de deleite, de satisfação, de puro envolvimento e
entrega, como se, ao lê-los, mergulhássemos instantaneamente em um excitante
jogo que um colega nos mostra no pátio da escola com a encantadora mistura de
inocência e seriedade que só uma criança sabe possuir. O próprio Cortázar
afirmou em vida sua compreensão da literatura como um jogo, mas um jogo sobre o
qual alguém pode debruçar fervorosamente, em queda livre. Para Vargas-Llosa, em
Cortázar o “escrever era jogar, divertir-se, organizar a vida – as palavras, as
ideias – com a arbitrariedade, a liberdade, a fantasia e a irresponsabilidade
com que o fazem as crianças ou os loucos.” Não à toa seu romance mais célebre
levou o nome de “Jogo da Amarelinha”, essa brincadeira quase arquetípica da
infância.
Talvez em decorrência
desse aparente despojamento que percorre sua obra, da aversão profunda e
manifesta que tinha Cortázar à seriedade, “essa senhora demasiado escutada”, em
suas próprias palavras, é que o trabalho do teor fantástico tenha obtido tanta
proeminência em sua ficção. Sobretudo em seus contos (pois, apesar de ter
experimentado com todos os gêneros, desde o romance até o relato de viagem, é
consenso que são seus contos os detentores do sumo mais fresco de sua força
criativa) é que se nota o trânsito constante entre o insólito e o habitual,
entre o absurdo e o estritamente real, entre as leis e suas exceções. O
fantástico em Cortázar está inevitavelmente ligado ao cotidiano, à rotina; em
suas tramas, via de regra, o banal balbucia lentamente e cada vez com mais
entusiasmo, até que numa súbita metamorfose quebra-se em milhares de cacos,
revelando que no interior do vaso repousava o brilho desconhecido daquilo que é
prodigioso, incomum, único, maravilhoso.
Mas qual era a secreta
alquimia, o fermento desmedido que tornou a escrita de Cortázar tão pulsante,
projetando em seus contos esse estalo permanente, esse assombro e essa
vivacidade que nos assolam no navegar das frases? O autor mesmo discorreu sobre
o assunto, sobre seu método e suas crenças com relação a um conto bem
realizado, um conto que vence o leitor por nocaute através da intensidade e da
tensão que deve carregar para fazer soar um sino permanente de vida em si.
Cortázar era adepto da feitura do relato enquanto “rejeição catártica”: um
contista que realiza plenamente seu ofício é aquele que consegue “se livrar de
um conto como quem tira de cima de si um bicho (…)”. Nesse processo de
exorcismo do caldo da imaginação, de possessão que irrompe repentinamente, a
narrativa se desprende do autor como algo que aparentemente nasce por si só,
sendo o escritor nada mais que um mediador, a ponte entre o estranhamento
inicial que gesta a história e a flama que esta ganha posteriormente perante os
olhos do leitor. Tal concepção do manuseio literário ganha tamanhas proporções
em Cortázar, que não seria exagero afirmá-la como uma concretização
extremamente bem delineada, no que se refere ao escritor enquanto autor em
ação, da ilustre máxima de Rimbaud “Je est un autre”, “Eu é um outro”.
A ênfase nesses nós
vitais, percursos da (in)consciência rumo à destilação final do ser em palavra,
exaltam a entrega alucinante de Julio a seu criar e sua posição de escritor
comprometido com o progresso da literatura enquanto forma inovadora de se estar
no mundo, de se ver o mundo, um refresco perceptivo do espírito. Pois não é
disso que se trata, afinal, a boa ficção, dessa invasão fluorescente de
consciências outras apoderando-se dos homens pelo feitiço da expressão? “Vai
ser difícil porque ninguém sabe direito quem é que verdadeiramente está
contando, se sou eu ou isso que aconteceu, ou o que estou vendo (nuvens, e às
vezes uma pomba) ou se simplesmente conto uma verdade que é somente minha
verdade, e então não é a verdade a não ser para meu estômago, para esta vontade
de sair correndo e acabar de alguma maneira com isso, seja lá o que for.”
Cortázar nos envolve e amarra com seus jogos e bruxarias.
André
Bonani é escritor e tradutor. Seu trabalho ficcional
concentra-se em experimentações com contos e aforismos. Em termos de conteúdo,
seus textos optam pelo trabalho do insólito, do fantástico, do surreal e do
onírico, sempre com uma investigação imagética e sensória no tratamento das
frases. Acaba de finalizar seu primeiro livro de prosa, “Deserto de Lunetas”.
Como tradutor, já realizou versões ao português de textos de Julio Cortázar,
Jorge Luis Borges, Franz Kafka, Paul Éluard e Guillaume Apollinaire. Publica há
mais de um ano, juntamente com outros três escritores, na plataforma digital
http://oprosario.blogspot.com.br E-mail: andre_bonani@hotmail.com
Assinar:
Postar comentários
(
Atom
)
Nenhum comentário
Postar um comentário