Contos de Amor e Crime: Um
Romance Violento
Miséria. Racismo.
Violência. Vingança. Amor. E a impossibilidade de reconciliação. Estes são
elementos presentes na trajetória de Jozz, o protagonista do segundo romance de
Afobório (a sua estreia em narrativas longas ocorreu com “Livre para ser
preso”, 2009 – Multifoco Editora).
Em “Contos de amor e crime: um romance
violento” (2014 – Editora Os Dez Melhores), o autor toca, sem dar licença a
concessões e atenuações desnecessárias, o dedo em uma ferida que está longe de
ser cicatrizada no Brasil: a do racismo.
Em agosto e setembro de
2014, esse traço intolerante da sociedade brasileira, e muitas vezes disfarçado
pela ideia de democracia racial, revelou sua hedionda imagem em dois casos: o
primeiro, nos impropérios de teor racista proferidos pela torcida do Grêmio
Foot-Ball Porto Alegrense contra o goleiro Aranha, do Santos Futebol Clube,
durante as oitavas de final da Copa do Brasil. “Macaco”, “negro fedido” entre
outras ofensas foram bradadas pelo setor da Geral da Arena do Grêmio. Esse
episódio ainda hoje rende discussões, condenações e tentativas de articular uma
inversão inaceitável, a de tornar a vítima algoz, por ela se demonstrar
irredutível em sua decisão de denunciar e se negar a uma conciliação promovida
por uma mídia corporativa que transforma a justiça em moeda de negociação, em
nome da audiência, e a injustiça em espetáculo e sensacionalismo. Tanto que ao
voltar à Arena, dessa vez, pelo Campeonato Brasileiro, Aranha foi hostilizado,
ironizado e xingado pela torcida do Grêmio, numa tentativa evidente de
intimidar e repudiar o goleiro por afrontar o racismo e não permitir que o
preconceito que é levado ao estádio de futebol seja cristalizado como algo
natural. O outro caso é a da série da Rede Globo, “O sexo e as negas”, escrita
por Miguel Falabella, no qual se explora novamente a visão da mulher negra
reduzida aos estereótipos sexuais e presa a uma realidade praticamente imutável
de pobreza. Falabella ironizou as críticas recebidas, a maioria vinda de
afro-brasileiras que não se sentiram, de modo algum, representadas. Assim como
a torcida do Grêmio, Falabella assumiu as “vestes” do incompreendido e
injustiçado, já que ele por ser escritor, não ter preconceito e empregar atores
negros, pode dispensar e tratar com sarcasmo a reprovação ao seu texto e ao
título de sua série.
Deste modo, “Contos de
amor e crime” prevalece/destaca-se pela sua atualidade, brutalidade e
capacidade de criar ecos e engendrar ressonância no “mar de rosas” dos
conservadores que não arredam pé da sua posição de que há muita vitimização no
mundo e que o grito dos excluídos não passa de tentativa de transformar a
sociedade geral em vilã.
No romance violento de
Afobório, a sociedade é o espectro de centenas de interdições e de meios de
proteção aos privilégios dos chamados “cidadãos de bem”. Jozz, um jovem negro
residente de favela – que opta em não ser vítima da discriminação racial –, é
um bandido. Bandido por falta de oportunidades e por escolha. Criado em um
ambiente social que o desfavorece desde o princípio, Jozz é forjado no abandono,
na miséria e na crueldade. Desprezado pela mãe, uma prostituta que recebe os
clientes em seu barraco diante do filho, e espancado pelo cafetão-amante de sua
genitora, o jovem é fruto de um lar desestruturado. Assim, um conflito entre
natureza violenta e naturalização da violência se apresenta. Sem oportunidades
ou linhas de fuga, em um ambiente no qual a lei é sobreviver, Jozz abraça a
chance de erguer a cabeça, ser respeitado, ao mesmo tempo que direcionada
negativas à receita pequeno-burguesa de esforço e mérito (que condena milhares
ao fracasso e à frustração – baixo autoestima, alcoolismo, suicídio,
agravamento da miséria etc.). Essa chance vem por intermédio da arma de
fogo. A arma impõe respeito, abre portas
para que a fome e os efeitos do preconceito racial não o atinjam com igual
ferocidade que devastam tantos moradores da periferia.
Jozz, ao conceder
entrevista a um jornalista (um homem branco, pertencente a outra realidade
social), conta sua história, compartilha sua visão de mundo e revela como o
amor e a violência se tornam amálgama em um lugar no qual ganhar e perder são
uma via de mão única. Registrando em seu depoimento o que vive diariamente,
Jozz é o dono de seu universo, sentindo em sua pele as consequências do
racismo, dos maus tratos, da hipocrisia da sociedade e encontrando seu próprio
jeito de expurgá-las quando decide superá-las assimilando o efeito colateral do
“destino” que lhe legaram. Assim como em “Pequeno grande homem” (1964), de
Thomas Berger, e “Entrevista com o vampiro” (1976), de Anne Rice, a entrevista
desbrava territórios de afetos, percepções e devires nos quais mundos se chocam
e, seja existencial ou politicamente, é preciso descobrir que há algo mais do
que a condição a qual se parece condenado. A personagem central de “Contos de
amor e crime” se torna o narrador que é obrigado a lidar com a violência que
sofre e com a violência que desencadeia. Então, se ser um assassino era
realmente sua única saída, cabe ao leitor – guiado pela sua própria
solidariedade ou intransigência – decidir. Pois, para Jozz, o crime é a
devolução exata a uma estrutura sustentada pela desigualdade e pelo racismo.
Neste sentido, o dualismo
bom-mau em meio à miséria não tem a divisão clara, de certo modo maniqueísta,
como encontrada na adaptação para o cinema realizada por Fernando Meireles, em
2002, da obra prima “Cidade de Deus” (1997), de Paulo Lins, na qual Buscapé e
Dadinho (que, quando adulto, torna-se o temível Zé Pequeno) são meninos que
crescem em uma realidade que faz de tudo para destruir qualquer possibilidade
de transformação social e jogá-los no “olho do furacão”, isto é, no crime como
senhor da dignidade e do respeito. Afobório nos “arremessa” tão somente um Zé
Pequeno. Porém, Jozz é um traficante que aponta o trajeto nefasto do racismo,
reagindo a partir das lições que a vida lhe dá. Não obstante, manuseia-as como
quem vislumbrou na História as causas de sua degradação, de seu
“estrangeirismo” em solo pátrio, e não apenas se forjou levando em conta os
efeitos direto do preconceito e da não igualdade de condições que sente na alma
e no corpo. Ao relatar o passo a passo de um bandido, chefe do tráfico, Jozz
apresenta como antagonista a sociedade. É o medo da sociedade que constrange
Jozz quando este vai ao shopping e é seguido de perto pelos seguranças, sendo
identificado como potencial assaltante. E é esse medo que o animaliza na
penitenciária, pois que o preso é percebido como uma vitória da justiça contra
a delinquência. O detento, ao romper o pacto social, instaura um ciclo de violência.
Encarcerando o monstro, que a sociedade não reconhece como sendo sua criação, a
paz pode voltar a ser uma regalia aos bem aventurados (só que uma instituição
que bestializa o ser não recupera, embrutece).
Jozz nos oferece algumas
preciosidades de crítica social. Ou melhor, Afobório sublinha os esquecimentos
de uma classe média alta, detentora de privilégios e usurpadora de esperanças.
Para Jozz, o morro/favela foi ao asfalto das ruas do centro, dos nichos
urbanizados pedir emprego, uma chance de “crescer” socialmente, e teve essa
solicitação negada. Pior, ao caminhar exibindo sua inquietação, porém com o
destemor de quem quer seu “lugar ao sol”, os negros, negras e brancos pobres
(se desejarem, já que hoje, deve-se atribuir ao algoz também a colheita [como
espólio] dos resultados de sua própria hegemonia conquistada pela violência
armamentista, cultural e discursiva) que ousaram invadir a cidade, movidos pela
necessidade de subsistência, foram tratados como suspeitos, representantes do
que há de mais vil no ser humano: a amoralidade, a violência, a sexualidade
exacerbada, a aversão ao trabalho (constructos que vem de longe e ainda
perduram). Humilhados e desumanizados, foram sentenciados à miséria. Mas Jozz
se encarregou de possuir uma arma e abrir caminho no território inóspito em que
o racismo o alocou. Ele não é um edificador da igualdade. Observa as boas
intenções das ONGs presentes na favela, mas não se ilude com oportunidades que
serão reféns da fortuna. O ser
brutalizado não se alimenta de esperança. Como escreveu Anton Tchecov, “o cão
só tem fé na carne”.
Afobório, em “Contos de
amor e crime: um romance violento”, entrega exatamente o que o título sugere,
um híbrido entre romance e conto, sendo que cada capítulo constitui fragmentos
que se associam (como em “Vidas secas” – 1938 – de Graciliano Ramos. Cada seção
se sustenta como uma pequena narrativa independente que costura a atmosfera da
miséria e esperança, quase vencida, que acompanha a vida dos retirantes) para
criar o quadro da existência de um ser humano que tenta compreender-se. A certa
altura, Jozz profere, “Talvez eu seja o único culpado pelo que eu sou”, porém
conclui mais à frente, “Discriminar é criar gladiadores, e gladiadores não são
feitos para amar”. E nessa atmosfera, Afobório nos brinda com um relato
naturalista, no qual o amor é um sopro momentâneo de pacificação do espírito.
No entanto, apenas na relação de Jozz com a ex prostituta Solange, já que é a
lei do mais forte que rege o pensamento e as ações. Destarte, os melhores elementos
das estórias de gangster estão condensados em uma guerra do tráfico à
brasileira, que gera “heróis”, defuntos e corpos para o aprisionamento com a
mesma velocidade. De quebra, Afobório tem o mérito de não se importar com o
politicamente correto. Porém, o faz em nome da crítica social e da
verossimilhança, pois que não desconhece o banimento em que vivem os deserdados
da cultura ocidental.
“Contos de amor e crime”
não simboliza a batalha de um justiceiro contra as opressões do mundo, nem
encarna a perfeita vítima que promove o xeque-mate em seus algozes por meio da
vingança, mas evidencia, do modo como a ótima literatura pode fazer, as tensões
geradas pelo ódio, a partir da incompreensão, do jogo de poder e do desejo de
suprimir o diferente e as diferenças, num mundo em que verdade e tradição rimam
com intolerância e conservadorismo. Essas tensões engendram um romance
violento, sem romantismo ou sentimentalismo. Cru, cruel, direto. Um bem-vindo
soco no estômago.
Autor: Afobório.
Com
ilustrações de Mario Cau
Projeto gráfico de Guilherme Peres
ISBN: 978-85-67366-6
Editora: Os Dez Melhores
Páginas: 122
Adquira seu exemplar direto com o autor
Wuldson Marcelo é mestre
em Estudos de Cultura Contemporânea e graduado em Filosofia (ambos pela UFMT).
É revisor de textos, autor do livro de contos “Subterfúgios Urbanos” (Editora
Multifoco, 2013) e um dos organizadores da coletânea “Beatniks, malditos e
marginais em Cuiabá: literatura na Cidade Verde” (Editora Multifoco, 2013).
Assinar:
Postar comentários
(
Atom
)
Nenhum comentário
Postar um comentário