A
Heleninha vivia reclamando do Adamastor. De repente, tudo nele parecia
irritá-la: O jeito de rir, de chupar laranja, de gritar quando espirra, o
cacoete de coçar as partes íntimas e depois cheirar a mão... Tudo, ou quase
tudo que o Adamastor fazia, a enervava! Evidentemente nem sempre foi assim.
Antes de casarem, os olhos da Heleninha o achavam lindo! A barba sempre por
fazer, por exemplo, era até elogiada. Dizia conferir-lhe um ar mais másculo: “Meu
homem!”, costumava suspirar como uma gata no cio, roçando seu rosto de pele
macia na aspereza facial do amado. Depois do casório, porém, até isso mudou! Bastava
que o Adamastor ficasse um dia sem fazê-la para a Heleninha censurá-lo de forma
implacável, sem chance de réplica! Passou a alegar que a hipótese de barba o
deixava com a aparência de sujo. Acusava-o de displicência, sem falar que servia
de pretexto para mantê-lo afastado na cama... “pinica!”, resmungava contrariada,
empurrando-o para longe de si.
As primeiras
queixas surgiram com os primeiros anos de casamento e foram se avolumando à
medida que o tempo passava. De início eram feitas somente em pensamento, num
murmúrio solitário, como um lamento mudo, praticamente uma súplica aos céus...
“Não acredito que agora ele deu para usar pochete de couro!” lamentava-se com
as mãos para cima, como se pedisse uma intervenção divina! Depois, suas
reclamações passaram a ser direcionadas a sua mãe, em tom confessional: “Você sabe
a última do Adamastor, mamãe?!” Se não sabia, passava a saber... não só da
última, mas também da penúltima, antepenúltima, ante-antepenúltima...
Não
satisfeita com uma única confidente, talvez por genuína irritação, talvez por
falta de assunto ou coisa mais importante para se ocupar, a Heleninha não
tardou a envolver as amigas no que considerava seu calvário particular, em
especial a Djalmira, sua vizinha mal amada que era considerada a mais
experiente da rua por conter em seu currículo amoroso uma lista de “ex”...
Procurar a Djalmira para desabafar era no fundo uma tentativa da Heleninha de
cooptar uma nova aliada, ou novas aliadas, já que a vizinha contava com a fama
de alcoviteira da: “O que você acha de um marido que todo santo dia cospe na
pia do banheiro ao acordar?” segredava a Heleninha para a vizinha, expondo sem
reservas as piores facetas do seu Adamastor.
Seus
relatos detalhados, nunca lisonjeiros para com o esposo, eram como janelas
entreabertas por onde suas amigas eram convidadas a espiar a intimidade do
casal. Mais que isso, não raro eram convocadas a opinar sobre as informações
reveladas: “O que você faria, Djalmira, se o teu marido palitasse os dentes com
farpas de caixa de fósforos na frente das visitas?”
Desconfia-se
que a intenção da Heleninha fosse mesmo de chocar, tanto que quanto mais solidária
se mostrasse a Djalmira, mais e melhores detalhes iam sendo expostos. Sem
dúvida era a parceria perfeita: a masoquista contando sua lamurias para a
sádica... Esta, para seu sórdido deleite, ao ver um princípio de incêndio conjugal,
ao invés de água, jogava álcool: “Se fosse o meu marido eu passava pimenta na
caixa de fósforos!” Era assim mesmo, sem possibilidade de defesa, como um réu
julgado à revelia, que o Adamastor ia sendo aquilatado pela vizinhança.
Portanto, não é de se estranhar que aos poucos, sem entender direito o porquê,
o Adamastor desagradava não só sua esposa, mas, por extensão, toda a porção
feminina do quarteirão, quiçá do bairro, que, compadecida da aparente má sorte
da Heleninha na escolha matrimonial, passou a hostilizá-lo em solidariedade a
vizinha!
–
Gazes... Ele sofre de gazes! Soube que quando está dormindo é uma verdadeira
artilharia antiaérea! – sussurrou uma vizinha a outra, apontando-o com o queixo
quando por elas passou no supermercado – Que horror! – ainda ouviu da segunda,
que só faltou trancar o ar.
Foi a
gota d’água! Já não era mais possível o Adamastor ignorar o que diziam a seu
respeito, ainda mais considerando a fonte de tais impropérios: a sua Heleninha!
Definitivamente precisava fazer alguma coisa!
Todos
sabiam que sendo o Adamastor quem era, tratava-se de uma questão de tempo para
que ele tomasse uma atitude. As vizinhas da Heleninha, temendo pela amiga,
receavam que quando a inevitável reação acontecesse, pudesse ser algo
impensado, talvez até violento... Já os seus amigos, indignados com o que
consideravam uma injustiça, apostavam, quase incentivavam, que ele não tardaria
a virar as costas, sair de casa e decretar sua solteirice! Afinal, é isso que
se espera de um homem com o mínimo de brio! Ledo engano, nem uma coisa, nem
outra aconteceu! Tomou talvez a mais radical entre todas as opções: resolveu
mudar! Isso mesmo... Um dia, um belo dia... sem aviso prévio ou explicação
anterior, acordou diferente: acordou outro homem.
Era
um novo Adamastor! Não que tenha sido fácil... No começo, até as coisas
aparentemente mais simples representavam um velado sacrifício. Uma agressão a
sua natureza! Não estava acostumado, por exemplo, a puxar a cadeira no
restaurante para que a esposa se sentasse. Ao contrário, desde a época em que
namoravam, sempre correu para puxar a cadeira... mas só para pegá-la para si
antes dela, garantindo assim o melhor lugar. Odiava sentar de frente para a
parede! Preferia a possibilidade de acompanhar com o olhar todo mundo que
circulava no restaurante... Portanto, como seu passado o condenava, não foi sem
motivos que a Heleninha ficou desconcertada ao vê-lo, pela primeira vez, se
adiantar, cadeira em punho, oferecendo-lhe o melhor lugar à mesa... A
Heleninha, embora disfarçando, sentou de mansinho, lentamente, desconfiada,
segurando a cadeira pelas bordas por suspeitar que na hora “h” ele a puxasse de
surpresa, fazendo-a cair no chão numa piada sem-graça! Mordeu a língua...
Era
mesmo muita novidade! O Adamastor não só passou a puxar gentilmente a cadeira para
a sua Heleninha sentar, como também se levantar prontamente a cada moça que se
aproximasse do grupo, inclinando levemente o corpo e estendendo-lhe
respeitosamente uma das mãos. Um gesto que evidentemente não passou
despercebido pelas amigas da Heleninha.
– Ô,
Heleninha... – cochichou a vizinha – É impressão minha ou o Adamastor...
–
Unrum... – interrompendo-a de tão ansiosa – Nem te conto, Djalmira! Nem te
conto... – sussurrou de volta.
– Que
coisa... O Adamastor, puxando a cadeira?!
–
Isso porque você ainda não o viu lavando a louça... Ele tem feito misérias com
uma esponja e um pinguinho de detergente. Minhas panelas nunca foram tão
brilhantes!
– Não
diz...
–
Digo sim! – confirmando com a cabeça – E se fosse só isso, já teria sido uma
grande mudança... – e foi desfiando uma lista de impensáveis novidades,
inclusive escanhoar a barba três vezes ao dia, para não irritar a esposa, nem
sua pele, caso ela desejasse beijá-lo sem aviso prévio.
A
vizinha levou às mãos a boca acusando o golpe. Era um misto de admiração,
incredulidade e inveja dissimulada. Afinal, sua amiga estava vivendo o sonho de
toda mulher: seu sapo caseiro virara um príncipe! E de fato, de forma
crescente, como uma obsessão, o Adamastor foi se afastando dia a dia do
estereótipo de machão, que incorporou por toda uma vida, e se tornando um novo
homem. Para ele, agora já não bastava mais ser somente um bom marido, queria
ser o melhor homem que uma mulher já teve. Desde então, entre feliz e
desconfiada, a Heleninha nunca mais viu o marido cortar as unhas do pé em cima
do sofá da sala, nem deixar os cotonetes sujos na mesinha de cabeceira, nem
mesmo a toalha molhada em cima da cama, nem tampouco fazer nenhuma das coisas
que sempre fez e tanto a incomodava e que, no fundo, sabia que todos os homens
do mundo também faziam. Para seu desespero, ela tinha agora em casa o homem com
que sempre sonhara!
– O
que você acha, Djalmira? Ontem não só ele me convidou para ir ao cinema, como
deixou que eu escolhesse o filme!
– Não
diz...!
–
Digo sim! Não me fiz de rogada, mandei ver de Richard Gere...
– Sua
louca!
–
Urrum... Mas ele nem protestou!
–
Uhm, sei não, amiga! Pode ser só um “bem súbito”. Faz o teste dos testes...
– O
do supermercado?
–
Isso... Convida ele pra ir contigo!
– Nem
sabes... Já fiz! Sábado à tarde. Dia de jogo... Semifinal! E ainda avisei que
eram compras do mês... coisa de três horas no mínimo, fora a fila do caixa!
–
Cruel! E ele? – pergunta a Djalmira, esfregando as mãos, esperando, quase
torcendo, pelo pior.
– Não
só topou, como nem ficou na área dos vinhos e destilados, como de costume. Ao
contrário, ficou escolhendo e pesando as verduras que eu pedi que buscasse pra
mim!
– Não
é possível!
–
Juro! – balançando a cabeça para dar mais credibilidade ao que dizia – É bem
verdade que se contorcia a cada barulho de foguete estourando lá fora, mas
aguentou firme... listinha de compras na mão, escolhendo rabanete, rúcula,
alface americana...
–
Estou chocada!
– E
eu não?! Tá certo, confundiu o brócolis com o espinafre, mas também não dá pra
exigir perfeição, né?
–
É... Não dá! – a amiga balbuciou, com evidente inveja.
A
Heleninha ainda não acreditava na transformação que estava se processando com o
seu marido. Cautelosa, continuou avaliando-o com testes cada vez mais
arriscados:
–
Adamastor... Essa tarde, enquanto você estava trabalhando, sei lá... Deu uma
coisa em mim e resolvi arrumar o seu armário – interpelou-o ainda na porta
assim que ele chegou do trabalho.
–
Jura, querida? – dando-lhe um beijo estralado na boca ao saber da novidade –
Nem precisava ter todo esse trabalho... Eu mesmo já estava planejando fazer
isso! Pensei inclusive em classificar as minhas roupas por cores, pra facilitar
na hora que eu for me arrumar!
–
Pois é... – prosseguiu, agora falando baixinho, sabendo que entrava num terreno
pantanoso – aproveitei, inclusive, pra fazer uma limpa nas suas roupas mais
velhas...
–
Legal, Heleninha!
– É?
Achou? – desconcertada com a reação – Uhm... – voltando à carga – Sabe o que é?
Tinha umas camisas e uns bonés de time de futebol que você nunca mais usou...
Pensei em ganhar espaço no armário...
– Não
diz... Jogou fora? Já não era sem tempo!
Ao
contrário do marido, a Heleninha ficava mais tensa a cada frase dita – Arrumei
o seu escritório também... – levantou a voz, colocando-se na frente dele, como
se ele não a tivesse ouvido ou entendido direito – Sabe aquelas apostilas de
cursos que você guarda e nunca lê...? Achei que já estava na hora de
descartá-las, queimei-as todas na churrasqueira! – falou e fechou os olhos,
esperando a reação.
– Aaah...
eu e essa minha mania de guardar tudo! – pensou alto, franzindo o semblante
enquanto se encaminhava para o quarto – Fez bem, querida! Fez muito bem!
A
Heleninha correu atrás dele, tentando em vão encontrar algum sinal do antigo
Adamastor.
–
Nossa, querida, a arrumação ficou show! – olhando o armário quase vazio depois
da intervenção feita – Deve estar morta de cansada com tanto trabalho! Vou te
preparar um banho de banheira!
– Joguei fora a sua coleção de futebol de
botõoooes!!! – ainda tentou a Heleninha, gritando para que sua voz pudesse ser
ouvida acima do barulho da água correndo.
* * *
Se
antes a Heleninha procurava as amigas para contar-lhes suas mágoas, agora eram
elas que a interpelavam buscando por novidades.
–
Conta, vai... Qual foi a última do Adamastor?
– Tá
bom... Acredita que ele ligou no meio da tarde pra não me deixar esquecer o
aniversário da mamãe?
–
Nãaaao... – incrédulas.
–
Urrum! E ainda sugeriu o presente – confidenciou às amigas, levando ambas as
mãos na boca – Caréeeezimo! Disse que estava economizando escondido ha meses
pra comprar essa surpresa pra mamãe!
– Que
lindinho! – comentaram as amigas, enternecidas.
Mas
se com as mulheres o prestígio do Adamastor não parava de subir, o mesmo não se
podia dizer do restante da população do bairro...
–
Querido, o que é isso? O que foi que aconteceu? Que olho roxo é esse?
– Não
sei como explicar, Heleninha! – tão surpreso quanto ela – Um sujeito apareceu
no meu trabalho... Eu nem o conheço... Ele simplesmente me deu um soco e disse
que isso era por eu colocar o lixo pra fora de casa todos os dias. Como será
que ele soube?
–
Bom, quer dizer... – corando com a indiscrição que cometera – Falei demais...
Confesso: comentei com a Alzira e com a Margarete!
De
fato a notícia do novo Adamastor e suas proezas atravessou os muros da sua
morada e se propagou quarteirão afora como uma epidemia. Agora, aos olhos das
esposas do bairro, já não era mais suficiente o marido sustentá-las e levá-las
para jantar uma vez por semana. Elas queriam mais... Queriam alguém como o
marido da Heleninha! Assim, não havia cônjuge bom o suficiente para resistir a
uma rápida comparação com o Adamastor.
–
Heleninha, me diz uma coisa... – tentou a Dona Socorro, despeitada por conta
das fofocas que ouvia – O Odivar, meu marido, ama a comida que faço. Diz que
ninguém cozinha como eu! Por acaso o Adamastor também elogia sua comida? Ein?
Ein?
–
Bem... – devolve a Heleninha, constrangida com o que ia revelar – Ultimamente,
na verdade, tem sido o Adamastor quem cozinha lá em casa! Sabe... Ele fez um
curso de gastronomia e comprou uns livros...
Não
tinha jeito, o Adamastor era visto agora pela ala masculina como um mau
exemplo. O anti-herói! Um paradigma perigoso que se estabelecia comprometendo a
ordem natural das coisas. Os mais radicais passaram inclusive a duvidar da sua
masculinidade.
–
Adamastor... – no boteco, os amigos mais
próximos chamaram-no de lado – Diz aqui uma coisa pra gente: É verdade que é
você que faz a cama todas as manhãs?
–
Bom, quer dizer – visivelmente encabulado – Não! Claro que não! Só nos finais
de semana, quando a empregada não trabalha!
Pausa
para absorverem a informação...
–
Olha, Adamastor. Somos amigos há quanto tempo? Quinze anos? Talvez mais...?!
Abre o jogo... – agora tinha uma rodinha ao redor dele – Conta pra nós! Tem
alguma coisa que você queira revelar pra gente? Sei lá... Você está sendo
chantageado? Teu sogro está pra morrer e você pode receber alguma herança? Fala
qualquer coisa, mais explica pra gente...
– Meu
sogro? Na verdade eu que andei emprestando um dinheiro pra ele. É que eu gosto
de ver a Heleninha feliz! – confidenciou, desviando o olhar para o chão de tão
envergonhado, como se isso fosse um grave delito.
Não
tinha jeito! Para alguns, os mais amigos, o Adamastor era uma vítima. Talvez,
especulavam entre eles, estivesse sofrendo de algum tipo de doença rara, ou,
quem sabe, estivesse possuído por um espírito maligno... provavelmente uma
“entidade” feminina querendo se vingar da raça masculina! Tinha que ter alguma
explicação, afinal, nenhum homem, em sã consciência, trocava o futebol por uma
tarde no shopping; nenhum marido, sem discussão, oferecia-se para tirar a mesa;
nenhum esposo, de livre iniciativa, candidatava-se para ficar com as crianças
para que a mulher pudesse ir ao salão. Fosse o que fosse, defendiam, era caso
de internação! Para outros, porém, o Adamastor só queria aparecer e fazia tudo
de caso pensado. Tinha se bandeado para o outro lado! Portanto, tratava-se de
uma ameaça a todos eles!
E se
o Adamastor já não tinha mais sossego, sendo cruelmente julgado pelos
companheiros, com a Heleninha e suas amigas também não era diferente. Aflita,
não demorou a perceber os olhares desejosos para cima do amado, tentando
seduzi-lo sorrateiramente a cada descuido seu. Para a Heleninha restava a
invejada condição de esposa do Adamastor. Algumas até questionando pelas suas
costas se ela estava à altura do seu amado.
Assim,
embora tenha causado uma enorme comoção, ninguém se surpreendeu quando, numa
manhã de sábado, circulou a notícia da morte do Adamastor. O trágico fim de
certa forma já era até esperado. O pobre Adamastor foi encontrado caído próximo
a uma floricultura, ainda com vida, mas apenas o suficiente para balbuciar o
nome da Heleninha antes de partir para sempre. Assassinato? Suicídio? Tomou
veneno? Impossível desvendar esse mistério! Sabe-se somente que tinha nas mãos
um ramalhete de flores e neste um cartão com juras de amor que pretendia deixar
ao lado da cama para a esposa quando esta acordasse. Não, não era nenhuma data
especial! Era só mais um agrado. O Adamastor virara isso mesmo... Um romântico
incorrigível! E essa foi sua perdição: seu coração não aguentou, morreu de
tanto amar!
Passados
alguns meses, aos poucos, as coisas foram naturalmente voltando ao normal no
bairro. Os homens que haviam cedido algum terreno à sua consorte, agora, com a
ausência daquele incomodo referencial, lentamente recuperaram seus privilégios
e voltaram a condição de leão da casa. Já a Heleninha, saudosa, vive chorando
pelos cantos... Não tem noite que não sonhe com o seu Adamastor. O curioso é
que sempre que pensa, lembra ou sonha com ele, é da barba por fazer roçando-lhe
a face que mais sente saudade!!! Época em que era feliz e não sabia...
Jean Marcel-
Escritor, professor universitário, palestrante. É pai de dois
adolescentes. Um leitor voraz. Eclético, escreve contos, crônicas,
romances e infanto-juvenil. Possui o blog brisaliteraria.com
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