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O marido (im)perfeito [Jean Marcel]



O marido (im)perfeito

A Heleninha vivia reclamando do Adamastor. De repente, tudo nele parecia irritá-la: O jeito de rir, de chupar laranja, de gritar quando espirra, o cacoete de coçar as partes íntimas e depois cheirar a mão... Tudo, ou quase tudo que o Adamastor fazia, a enervava! Evidentemente nem sempre foi assim. Antes de casarem, os olhos da Heleninha o achavam lindo! A barba sempre por fazer, por exemplo, era até elogiada. Dizia conferir-lhe um ar mais másculo: “Meu homem!”, costumava suspirar como uma gata no cio, roçando seu rosto de pele macia na aspereza facial do amado. Depois do casório, porém, até isso mudou! Bastava que o Adamastor ficasse um dia sem fazê-la para a Heleninha censurá-lo de forma implacável, sem chance de réplica! Passou a alegar que a hipótese de barba o deixava com a aparência de sujo. Acusava-o de displicência, sem falar que servia de pretexto para mantê-lo afastado na cama... “pinica!”, resmungava contrariada, empurrando-o para longe de si.
As primeiras queixas surgiram com os primeiros anos de casamento e foram se avolumando à medida que o tempo passava. De início eram feitas somente em pensamento, num murmúrio solitário, como um lamento mudo, praticamente uma súplica aos céus... “Não acredito que agora ele deu para usar pochete de couro!” lamentava-se com as mãos para cima, como se pedisse uma intervenção divina! Depois, suas reclamações passaram a ser direcionadas a sua mãe, em tom confessional: “Você sabe a última do Adamastor, mamãe?!” Se não sabia, passava a saber... não só da última, mas também da penúltima, antepenúltima, ante-antepenúltima...
Não satisfeita com uma única confidente, talvez por genuína irritação, talvez por falta de assunto ou coisa mais importante para se ocupar, a Heleninha não tardou a envolver as amigas no que considerava seu calvário particular, em especial a Djalmira, sua vizinha mal amada que era considerada a mais experiente da rua por conter em seu currículo amoroso uma lista de “ex”... Procurar a Djalmira para desabafar era no fundo uma tentativa da Heleninha de cooptar uma nova aliada, ou novas aliadas, já que a vizinha contava com a fama de alcoviteira da: “O que você acha de um marido que todo santo dia cospe na pia do banheiro ao acordar?” segredava a Heleninha para a vizinha, expondo sem reservas as piores facetas do seu Adamastor.
Seus relatos detalhados, nunca lisonjeiros para com o esposo, eram como janelas entreabertas por onde suas amigas eram convidadas a espiar a intimidade do casal. Mais que isso, não raro eram convocadas a opinar sobre as informações reveladas: “O que você faria, Djalmira, se o teu marido palitasse os dentes com farpas de caixa de fósforos na frente das visitas?”
Desconfia-se que a intenção da Heleninha fosse mesmo de chocar, tanto que quanto mais solidária se mostrasse a Djalmira, mais e melhores detalhes iam sendo expostos. Sem dúvida era a parceria perfeita: a masoquista contando sua lamurias para a sádica... Esta, para seu sórdido deleite, ao ver um princípio de incêndio conjugal, ao invés de água, jogava álcool: “Se fosse o meu marido eu passava pimenta na caixa de fósforos!” Era assim mesmo, sem possibilidade de defesa, como um réu julgado à revelia, que o Adamastor ia sendo aquilatado pela vizinhança. Portanto, não é de se estranhar que aos poucos, sem entender direito o porquê, o Adamastor desagradava não só sua esposa, mas, por extensão, toda a porção feminina do quarteirão, quiçá do bairro, que, compadecida da aparente má sorte da Heleninha na escolha matrimonial, passou a hostilizá-lo em solidariedade a vizinha!
– Gazes... Ele sofre de gazes! Soube que quando está dormindo é uma verdadeira artilharia antiaérea! – sussurrou uma vizinha a outra, apontando-o com o queixo quando por elas passou no supermercado – Que horror! – ainda ouviu da segunda, que só faltou trancar o ar.
Foi a gota d’água! Já não era mais possível o Adamastor ignorar o que diziam a seu respeito, ainda mais considerando a fonte de tais impropérios: a sua Heleninha! Definitivamente precisava fazer alguma coisa!
Todos sabiam que sendo o Adamastor quem era, tratava-se de uma questão de tempo para que ele tomasse uma atitude. As vizinhas da Heleninha, temendo pela amiga, receavam que quando a inevitável reação acontecesse, pudesse ser algo impensado, talvez até violento... Já os seus amigos, indignados com o que consideravam uma injustiça, apostavam, quase incentivavam, que ele não tardaria a virar as costas, sair de casa e decretar sua solteirice! Afinal, é isso que se espera de um homem com o mínimo de brio! Ledo engano, nem uma coisa, nem outra aconteceu! Tomou talvez a mais radical entre todas as opções: resolveu mudar! Isso mesmo... Um dia, um belo dia... sem aviso prévio ou explicação anterior, acordou diferente: acordou outro homem.
Era um novo Adamastor! Não que tenha sido fácil... No começo, até as coisas aparentemente mais simples representavam um velado sacrifício. Uma agressão a sua natureza! Não estava acostumado, por exemplo, a puxar a cadeira no restaurante para que a esposa se sentasse. Ao contrário, desde a época em que namoravam, sempre correu para puxar a cadeira... mas só para pegá-la para si antes dela, garantindo assim o melhor lugar. Odiava sentar de frente para a parede! Preferia a possibilidade de acompanhar com o olhar todo mundo que circulava no restaurante... Portanto, como seu passado o condenava, não foi sem motivos que a Heleninha ficou desconcertada ao vê-lo, pela primeira vez, se adiantar, cadeira em punho, oferecendo-lhe o melhor lugar à mesa... A Heleninha, embora disfarçando, sentou de mansinho, lentamente, desconfiada, segurando a cadeira pelas bordas por suspeitar que na hora “h” ele a puxasse de surpresa, fazendo-a cair no chão numa piada sem-graça! Mordeu a língua...
Era mesmo muita novidade! O Adamastor não só passou a puxar gentilmente a cadeira para a sua Heleninha sentar, como também se levantar prontamente a cada moça que se aproximasse do grupo, inclinando levemente o corpo e estendendo-lhe respeitosamente uma das mãos. Um gesto que evidentemente não passou despercebido pelas amigas da Heleninha.
– Ô, Heleninha... – cochichou a vizinha – É impressão minha ou o Adamastor...
– Unrum... – interrompendo-a de tão ansiosa – Nem te conto, Djalmira! Nem te conto... – sussurrou de volta.
– Que coisa... O Adamastor, puxando a cadeira?!
– Isso porque você ainda não o viu lavando a louça... Ele tem feito misérias com uma esponja e um pinguinho de detergente. Minhas panelas nunca foram tão brilhantes!
– Não diz...
– Digo sim! – confirmando com a cabeça – E se fosse só isso, já teria sido uma grande mudança... – e foi desfiando uma lista de impensáveis novidades, inclusive escanhoar a barba três vezes ao dia, para não irritar a esposa, nem sua pele, caso ela desejasse beijá-lo sem aviso prévio.
A vizinha levou às mãos a boca acusando o golpe. Era um misto de admiração, incredulidade e inveja dissimulada. Afinal, sua amiga estava vivendo o sonho de toda mulher: seu sapo caseiro virara um príncipe! E de fato, de forma crescente, como uma obsessão, o Adamastor foi se afastando dia a dia do estereótipo de machão, que incorporou por toda uma vida, e se tornando um novo homem. Para ele, agora já não bastava mais ser somente um bom marido, queria ser o melhor homem que uma mulher já teve. Desde então, entre feliz e desconfiada, a Heleninha nunca mais viu o marido cortar as unhas do pé em cima do sofá da sala, nem deixar os cotonetes sujos na mesinha de cabeceira, nem mesmo a toalha molhada em cima da cama, nem tampouco fazer nenhuma das coisas que sempre fez e tanto a incomodava e que, no fundo, sabia que todos os homens do mundo também faziam. Para seu desespero, ela tinha agora em casa o homem com que sempre sonhara!
– O que você acha, Djalmira? Ontem não só ele me convidou para ir ao cinema, como deixou que eu escolhesse o filme!
– Não diz...!
– Digo sim! Não me fiz de rogada, mandei ver de Richard Gere...
– Sua louca!
– Urrum... Mas ele nem protestou!
– Uhm, sei não, amiga! Pode ser só um “bem súbito”. Faz o teste dos testes...
– O do supermercado?
– Isso... Convida ele pra ir contigo!
– Nem sabes... Já fiz! Sábado à tarde. Dia de jogo... Semifinal! E ainda avisei que eram compras do mês... coisa de três horas no mínimo, fora a fila do caixa!
– Cruel! E ele? – pergunta a Djalmira, esfregando as mãos, esperando, quase torcendo, pelo pior.
– Não só topou, como nem ficou na área dos vinhos e destilados, como de costume. Ao contrário, ficou escolhendo e pesando as verduras que eu pedi que buscasse pra mim!
– Não é possível!
– Juro! – balançando a cabeça para dar mais credibilidade ao que dizia – É bem verdade que se contorcia a cada barulho de foguete estourando lá fora, mas aguentou firme... listinha de compras na mão, escolhendo rabanete, rúcula, alface americana...
– Estou chocada!
– E eu não?! Tá certo, confundiu o brócolis com o espinafre, mas também não dá pra exigir perfeição, né?
– É... Não dá! – a amiga balbuciou, com evidente inveja.
A Heleninha ainda não acreditava na transformação que estava se processando com o seu marido. Cautelosa, continuou avaliando-o com testes cada vez mais arriscados:
– Adamastor... Essa tarde, enquanto você estava trabalhando, sei lá... Deu uma coisa em mim e resolvi arrumar o seu armário – interpelou-o ainda na porta assim que ele chegou do trabalho.
– Jura, querida? – dando-lhe um beijo estralado na boca ao saber da novidade – Nem precisava ter todo esse trabalho... Eu mesmo já estava planejando fazer isso! Pensei inclusive em classificar as minhas roupas por cores, pra facilitar na hora que eu for me arrumar!
– Pois é... – prosseguiu, agora falando baixinho, sabendo que entrava num terreno pantanoso – aproveitei, inclusive, pra fazer uma limpa nas suas roupas mais velhas...
– Legal, Heleninha!
– É? Achou? – desconcertada com a reação – Uhm... – voltando à carga – Sabe o que é? Tinha umas camisas e uns bonés de time de futebol que você nunca mais usou... Pensei em ganhar espaço no armário...
– Não diz... Jogou fora? Já não era sem tempo!
Ao contrário do marido, a Heleninha ficava mais tensa a cada frase dita – Arrumei o seu escritório também... – levantou a voz, colocando-se na frente dele, como se ele não a tivesse ouvido ou entendido direito – Sabe aquelas apostilas de cursos que você guarda e nunca lê...? Achei que já estava na hora de descartá-las, queimei-as todas na churrasqueira! – falou e fechou os olhos, esperando a reação.
– Aaah... eu e essa minha mania de guardar tudo! – pensou alto, franzindo o semblante enquanto se encaminhava para o quarto – Fez bem, querida! Fez muito bem!
A Heleninha correu atrás dele, tentando em vão encontrar algum sinal do antigo Adamastor.
– Nossa, querida, a arrumação ficou show! – olhando o armário quase vazio depois da intervenção feita – Deve estar morta de cansada com tanto trabalho! Vou te preparar um banho de banheira!
  – Joguei fora a sua coleção de futebol de botõoooes!!! – ainda tentou a Heleninha, gritando para que sua voz pudesse ser ouvida acima do barulho da água correndo.
*  *  *
Se antes a Heleninha procurava as amigas para contar-lhes suas mágoas, agora eram elas que a interpelavam buscando por novidades.
– Conta, vai... Qual foi a última do Adamastor?
– Tá bom... Acredita que ele ligou no meio da tarde pra não me deixar esquecer o aniversário da mamãe?
– Nãaaao... – incrédulas.
– Urrum! E ainda sugeriu o presente – confidenciou às amigas, levando ambas as mãos na boca – Caréeeezimo! Disse que estava economizando escondido ha meses pra comprar essa surpresa pra mamãe!
– Que lindinho! – comentaram as amigas, enternecidas.
Mas se com as mulheres o prestígio do Adamastor não parava de subir, o mesmo não se podia dizer do restante da população do bairro...
– Querido, o que é isso? O que foi que aconteceu? Que olho roxo é esse?
– Não sei como explicar, Heleninha! – tão surpreso quanto ela – Um sujeito apareceu no meu trabalho... Eu nem o conheço... Ele simplesmente me deu um soco e disse que isso era por eu colocar o lixo pra fora de casa todos os dias. Como será que ele soube?
– Bom, quer dizer... – corando com a indiscrição que cometera – Falei demais... Confesso: comentei com a Alzira e com a Margarete!
De fato a notícia do novo Adamastor e suas proezas atravessou os muros da sua morada e se propagou quarteirão afora como uma epidemia. Agora, aos olhos das esposas do bairro, já não era mais suficiente o marido sustentá-las e levá-las para jantar uma vez por semana. Elas queriam mais... Queriam alguém como o marido da Heleninha! Assim, não havia cônjuge bom o suficiente para resistir a uma rápida comparação com o Adamastor.
– Heleninha, me diz uma coisa... – tentou a Dona Socorro, despeitada por conta das fofocas que ouvia – O Odivar, meu marido, ama a comida que faço. Diz que ninguém cozinha como eu! Por acaso o Adamastor também elogia sua comida? Ein? Ein?
– Bem... – devolve a Heleninha, constrangida com o que ia revelar – Ultimamente, na verdade, tem sido o Adamastor quem cozinha lá em casa! Sabe... Ele fez um curso de gastronomia e comprou uns livros...
Não tinha jeito, o Adamastor era visto agora pela ala masculina como um mau exemplo. O anti-herói! Um paradigma perigoso que se estabelecia comprometendo a ordem natural das coisas. Os mais radicais passaram inclusive a duvidar da sua masculinidade.
– Adamastor... –  no boteco, os amigos mais próximos chamaram-no de lado – Diz aqui uma coisa pra gente: É verdade que é você que faz a cama todas as manhãs?
– Bom, quer dizer – visivelmente encabulado – Não! Claro que não! Só nos finais de semana, quando a empregada não trabalha!
Pausa para absorverem a informação...
– Olha, Adamastor. Somos amigos há quanto tempo? Quinze anos? Talvez mais...?! Abre o jogo... – agora tinha uma rodinha ao redor dele – Conta pra nós! Tem alguma coisa que você queira revelar pra gente? Sei lá... Você está sendo chantageado? Teu sogro está pra morrer e você pode receber alguma herança? Fala qualquer coisa, mais explica pra gente...
– Meu sogro? Na verdade eu que andei emprestando um dinheiro pra ele. É que eu gosto de ver a Heleninha feliz! – confidenciou, desviando o olhar para o chão de tão envergonhado, como se isso fosse um grave delito.
Não tinha jeito! Para alguns, os mais amigos, o Adamastor era uma vítima. Talvez, especulavam entre eles, estivesse sofrendo de algum tipo de doença rara, ou, quem sabe, estivesse possuído por um espírito maligno... provavelmente uma “entidade” feminina querendo se vingar da raça masculina! Tinha que ter alguma explicação, afinal, nenhum homem, em sã consciência, trocava o futebol por uma tarde no shopping; nenhum marido, sem discussão, oferecia-se para tirar a mesa; nenhum esposo, de livre iniciativa, candidatava-se para ficar com as crianças para que a mulher pudesse ir ao salão. Fosse o que fosse, defendiam, era caso de internação! Para outros, porém, o Adamastor só queria aparecer e fazia tudo de caso pensado. Tinha se bandeado para o outro lado! Portanto, tratava-se de uma ameaça a todos eles!
E se o Adamastor já não tinha mais sossego, sendo cruelmente julgado pelos companheiros, com a Heleninha e suas amigas também não era diferente. Aflita, não demorou a perceber os olhares desejosos para cima do amado, tentando seduzi-lo sorrateiramente a cada descuido seu. Para a Heleninha restava a invejada condição de esposa do Adamastor. Algumas até questionando pelas suas costas se ela estava à altura do seu amado.
Assim, embora tenha causado uma enorme comoção, ninguém se surpreendeu quando, numa manhã de sábado, circulou a notícia da morte do Adamastor. O trágico fim de certa forma já era até esperado. O pobre Adamastor foi encontrado caído próximo a uma floricultura, ainda com vida, mas apenas o suficiente para balbuciar o nome da Heleninha antes de partir para sempre. Assassinato? Suicídio? Tomou veneno? Impossível desvendar esse mistério! Sabe-se somente que tinha nas mãos um ramalhete de flores e neste um cartão com juras de amor que pretendia deixar ao lado da cama para a esposa quando esta acordasse. Não, não era nenhuma data especial! Era só mais um agrado. O Adamastor virara isso mesmo... Um romântico incorrigível! E essa foi sua perdição: seu coração não aguentou, morreu de tanto amar!
Passados alguns meses, aos poucos, as coisas foram naturalmente voltando ao normal no bairro. Os homens que haviam cedido algum terreno à sua consorte, agora, com a ausência daquele incomodo referencial, lentamente recuperaram seus privilégios e voltaram a condição de leão da casa. Já a Heleninha, saudosa, vive chorando pelos cantos... Não tem noite que não sonhe com o seu Adamastor. O curioso é que sempre que pensa, lembra ou sonha com ele, é da barba por fazer roçando-lhe a face que mais sente saudade!!! Época em que era feliz e não sabia...




Jean Marcel- Escritor, professor universitário, palestrante. É pai de dois adolescentes. Um leitor voraz. Eclético, escreve contos, crônicas, romances e infanto-juvenil. Possui o blog brisaliteraria.com


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