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Ruptura [Cinthia Kriemler]



Ruptura

Eles recuam. No último instante. Recolhem os gritos, o nojo, a violência das percepções individuais. Estacam. Voltam. E o silêncio parece bastar. O cansaço obriga a uma trégua. Uma trégua curta. Um tempo para desnutrir a tragédia latente. Sem a acidez corrosiva dos humores.

Eles retrocedem, extenuados. Hostilidades suspensas, arena escura. É preciso aliviar a eventração dolorosa do ódio. Permitir que nervos, músculos, fibras se desentesem. É hora de repetir risos programados, gestos comedidos, frases insignificantes, olhares desviados, desencontros planejados. Amenidades recorrentes. Ferramentas de quem se esgueira nos vazios.
Tudo parece renúncia. À fúria que há instantes era vômito de fluxo impiedoso; às palavras cuspidas sem moldagem ou corte; às acusações lançadas ao ar como malabares imprevisíveis. Corpo e corpo se retiram. E a calmaria empresta um jeito de paz ao abismo.
Eles se espreitam. Os anos não foram capazes de acumpliciá-los. Nem como amantes, nem como amigos, nem como gente. São apenas bestas ferozes. Urinam territórios, afiam as garras, caçam-se um ao outro, enfrentam-se com patadas e mordidas, lambem as cicatrizes para manter ativa a memória da dor. E se espreitam.
Mas haverá a hora da ruptura. Quando o vício mutilante de ferir será descontinuado. Porque a um deles acontecerá de enxergar a feiura deformada das coisas dilaceradas. A esse, que enxergará a tristeza inútil dos cacos colados em remendo, será permitido chorar. E partir.


Cinthia Kriemler - Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.


Um comentário

cecilia disse...

Belíssimo texto, Cinthia. Quantos casais vi assim se digladiando até o fim. Parabéns!