A
bolha e você
por
Victor Lisboa
Artigo
publicado no site PapodeHomem
David Vetter ficou
conhecido na década de 70 como o menino bolha (the bubble boy). O pobre garoto
nasceu com uma deficiência tão severa em seu sistema imunológico que precisava
isolar-se do mundo e viver num ambiente totalmente esterelizado. Médicos e
cientistas então projetaram uma bolha de plástico, dentro da qual David ficava
protegido dos germes do mundo exterior. Sua história inspirou, em 1976, um drama cinematográfico com John Travolta e, em 2001, uma comédia sofrível.
Bolha é tudo aquilo que
nos limita mas, ao mesmo tempo, nos protege. Bolha é tudo aquilo que nos ilude
sobre a natureza da realidade mas, ao mesmo tempo, serve como apoio para
prosseguirmos vivendo.
Olhe agora mesmo para sua
vida e se pergunte: onde está a minha bolha? quais são os meus limites? do que
ela me protege? como ela me limita?
Romper as barreiras da
nossa bolha é simultaneamente uma forma de morte e uma espécie de nascimento,
uma perda irreversível e um ganho. Representa um grande e verdadeiro risco, às
vezes inclusive de vida, mas também com frequência significa a única
possibilidade de vivermos autenticamente.
A melhor metáfora para
essa situação é o mito do Jardim do Éden. Segundo a lenda judaico-cristã, o
paraíso era uma bolha perfeita, idílica, dentro da qual Adão e Eva permaneciam
protegidos pelo Criador, livres da vergonha de seus próprios corpos, senhores
de suas certezas, imortais. Mas foram expulsos dessa bolha ao tomarem
conhecimento do Bem e do Mal, tornando-se “iguais a deuses” por desobedecerem a
proibição divina.
Há três elementos
importantes nessa lenda.
David Vetter e sua bolha.
Onde está a nossa?
Em primeiro lugar,
permanecer em uma bolha não é algo necessariamente ruim — ela não deixa de ser
uma espécie de paraíso protetor. Sair do mundo seguro da bolha nem sempre é
algo positivo, pois nada na vida é tão simples, nada é totalmente certo ou
errado.
Muitas vezes permanecer na
bolha é a melhor escolha — tudo depende da capacidade de cada um de lidar com
um mundo que pode ser assustadoramente caótico e, por vezes, hostil, tóxico.
Assim como o menino David, não adianta ousarmos romper nossa bolha protetora,
ainda que ela seja composta de algumas ilusões, se não conseguirmos criar
dentro de nós os mecanismos de defesa necessários para lidar com os desafios
que nos aguardam lá fora.
Em segundo lugar, da lenda
judaico-cristã aprendemos que a saída da bolha exige o rompimento de um tabu,
exige que sejamos de alguma forma desobedientes e nos recusemos a agir da forma
que esperam de nós. É sempre um movimento que depende de coragem para enfrentar
resistências e conflitos, pois nos colocamos, ainda que temporariamente, na
posição de desviantes de alguma norma.
As parede côncava da bolha
que nos aprisiona e protege é feita de conceitos e normas — essas últimas
muitas vezes jamais ditas em voz alta, jamais questionadas. E o questionamento
desses conceitos e normas é o primeiro passo de um rompimento que possui,
invariavelmente, cores traumáticas.
Por fim, a história do
Éden nos ensina que a saída da bolha sempre nos deixa desnorteados e, ao mesmo
tempo, resulta em uma ampliação do nível de nossa consciência. A repentina
amplitude do horizonte, que antes considerávamos ao alcance de nossas mãos,
pode nos deixar assustados. E não são poucos os que fazem de tudo para retornar
de volta à bolha, ou fingir que ela ainda existe ao seu redor.
“Vem cá Adão, vem pra fora
da bolha que aqui é o maior barato”, a Eva parece estar dizendo.
No fundo, sempre se trata
de dar um passo a mais na direção de uma perspectiva que revela o quão pequenos
somos diante da imensidão da realidade. Antes, dentro da bolha, podíamos nos
achar gigantes. Agora, percebemos que o mundo vai muito além do nosso jardim do
Éden.
A consciência que ganhamos
nos ajuda a interagir de forma mais eficiente com o mundo circundante, pois nos
dá um tipo inestimável de poder: o de percebermos o quão pouco podemos na vida
e o quanto o exercício efetivo desse pouco de poder é fundamental para
construirmos as utopias possíveis. Paradoxalmente, nos tornamos “iguais a deuses” e “meros mortais”.
É como a perda da
mortalidade na lenda de Adão e Eva: percebemos nossa finitude, descobrirmos que
não somos imortais, mas o fim dessa ilusão nos permite viver de forma mais plena.
Contudo, há um outro
aspecto que é sempre esquecido, inclusive pelas lendas. Quando você sai da
bolha, fica tão desnorteado com a aparente vastidão do amplo mundo ao seu redor
que demora para perceber que esse novo mundo é, também, uma outra bolha.
A história da experiência
humana é a história de nossa transição de uma bolha para a outra, com as etapas
do rompimento, sentimento de amplitude, acomodação, sentimento de
aprisionamento e novo rompimento. E isso ocorre principalmente porque é nossa
tendência natural categorizar, racionalizar e simplificar o universo
desconhecido e complexo até converter a amplidão discernível em um mundinho em
primeiro lugar conhecido, num segundo momento confortável, e numa terceira
etapa asfixiante.
Somos os arquitetos de
nossas bolhas conceituais, somos em parte os carcereiros das prisões que nos
limitam e em parte quem gira a chave e abre a porta da cela. Se viver é
transitar de bolha em bolha, a história de uma vida plena é a história de
pequenas mortes e pequenos nascimentos, de rompimentos e descobertas, pois a vida começa onde acaba nossa zona de conforto.
Sua primeira bolha foi o
útero. Sua última será a própria vida – ou haverá outras bolhas além dessa
derradeira? Isso não importa. O que importa é, no final desse caminho, você
constatar que foi capaz de reconhecer quais bolhas precisava estourar e quais bolhas
amava demais para romper, e que teve a coragem e a sabedoria necessárias para
compreender o momento de se despedir daquelas que se tornaram prisões.
Victor Lisboa
Não escrevo por achar que
tenho talento, sequer para dizer algo importante, e sim por autocomplacência e
descaramento: de todos os vícios e extravagâncias tolerados socialmente,
escrever é o mais inofensivo. Logo, deixe-me abusar, aqui e como editor no site
Ano Zero.
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