Para Ivana Schäfer, porque
nos descobrimos no mesmo amor.
No mínimo, como professor
de Literatura que se vê às voltas com a poesia de Manoel de Barros e,
justamente por causa desse confronto, é chamado a escrever sobre o poeta de
Mato Grosso, eu seguiria step-by-step a cartilha da teoria literária aprendida
em sala de aula. Porém, há uns detalhes importantes a considerar. Primeiro,
antes do professor está o leitor. Segundo, e o mais importante de tudo, o
poeta: a poesia: Manoel de Barros.
Certa vez, li de uma poeta
desconhecida que a poesia é melodia. O que é mesmo a poesia? A poeta assim o
disse para se gabar de suas leituras de estrangeiros no original. Vem o
tradutor e traduz, por exemplo, Walt Whitman. Recriação ou não, a melodia ecoa.
É melodia, Manoel de Barros?
Palavra feita. Manoel de
Barros. É. E tempo. Palavra e tempo: amarrados no poste. Poesia.
Deixem-me contar como o
conheci. No meu jeito torto de conhecer o mundo: era um mês de junho. Inverno,
tempo sazonal bom para a minha alma. E uma tarde. No intervalo de um filme.
“Nas profundezas do mar sem fim.” A Rede Globo exibia o comercial de
Integração do Estado de Mato Grosso do Sul. Era ele, o poeta. Se eu sabia dele, assim
de nome? Mas sim. Porém não o conhecia. Pensava que fosse poeta de cordel.
Faltava interesse, naquele tempo, para conhecer poetas de cordel. Porém,
fiquei. É que, agora, o poeta andava, e sorria, e o sorriso era a palavra: o
menino. “Agora tenho saudade do que não fui. ”
“Eu tenho que essa visão
oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão
da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o
sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores. ”.
O nosso verdadeiro
encontro não foi assim tão rápido. É que eu ainda não sabia que o poeta fosse a
palavra. E continuei no meu jeito torto de descobrir as coisas. Como o poeta.
Reinventando. Fazia parte de um grupo de leitores. Aconteceu que, um dia, me
mandaram uns livros. Todos de Manoel de Barros. Aí, fui. Li. Fiquei. Fiquei...
Fiquei: como diz Alfredo Bosi: “A imagem pode ser retida e depois suscitada
pela reminiscência ou pelo sonho. [...] aquele processo de coexistência de
tempos que marca a ação da memória: o agora refaz o passado e convive com ele”.
Assim, Manoel de Barros: feito de memória-palavra, não melodia. Mais do que
isso. Também de reconstrução. O estado puro da palavra, cuja busca empreendeu
Clarice Lispector. Manoel, Clarice e o ovo: a palavra. Ou Guimarães Rosa. A
mentira invertida no real: um lagarto na pedra. “Era o próprio indizível pessoal.
” “Para apalpar as intimidades do mundo. ” Ou o mundo do não ser. Lucy, nossa
mãe Eva. “No descomeço era o verbo.” Porque a mãe Eva desceu da árvore, amou e
se descobriu: existia. E viu o lagarto na pedra. “O delírio do verbo estava no
começo, lá onde a criança diz: ‘Eu escuto a cor dos passarinhos.’” E mais: “O
verbo tem que pegar delírio”. “A poesia está guardada nas palavras – é tudo que
eu sei.” Um dia, quando não for mais preciso falar da Natureza ou do Tempo, a
literatura some, o homem morre. Porque o homem é feito de imagens: o mundo é belo.
A natureza é bela. As imagens ficam. O tempo. Assim Manoel de Barros. “Porém,
vendo o Homem que as moscas não davam conta de iluminar o Silêncio das coisas
anônimas – passaram essa tarefa para os poetas. "Manoel de Barros é poeta do
mundo – e é assim que vai ser, sempre: para sempre amado. “A mãe reparava o
menino com ternura. A mãe falou: ‘Meu filho você vai ser poeta! Você vai
carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas
peraltagens, e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!'”.
Não é assim?
Quando o mundo abandonar o
meu olho
Quando o meu olho furado
de belezas for
Esquecido pelo mundo.
Que hei de fazer?
Quando o silêncio que
grita do meu olho não for mais escutado.
Que hei de fazer?
Que hei de fazer se de repente
a manhã voltar?
Que hei de fazer?
- Dormir, talvez chorar.
Que hei de fazer?
Que hei de fazer se de
repente a manhã voltar?
Que hei de fazer?
Que faremos, meu poeta?
Até lá, o mundo não o terá esquecido. Porque o poeta trouxe o mundo para nós.
Porque nos descobrimos no mundo em sua real beleza. Primeiro, o Tempo. E a
Natureza. E o menino. E o rio. Os vazios preenchidos.
Assim, Manoel de Barros.
Nós te amamos.
Milton
de Oliveira Cardoso Junior, baiano da Chapada Diamantina, é graduado em Letras,
Língua Portuguesa e Suas Literaturas pela Universidade do Estado da Bahia,
Uneb, Campus XVI, Irecê, Bahia. Surdo desde os dez anos, em consequência de
meningite, tem dificuldade em aprender Libras, talvez pelo fato de ter começado
a ler muito cedo. Entre os seus escritores preferidos, encontram-se Thomas Mann
e Guimarães Rosa.
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