Réquiem
– Dores Que a Arte Torna Audível
A experiência da guerra e
suas subsequentes perturbações emocionais são como ferro em brasa. As marcas
que afetam a vida psíquica têm a “força” de destruir os ídolos que construíram
e consolidaram os embustes, que sustentam os ideais de superioridade de uma
nação, que cedo ou tarde (na maioria dos casos, tarde demais) acabam por gerar
a ruína de crenças, sonhos e vidas. Como nos lembra Hannah Arendt, a violência
é instrumental, por isso o poder (o grupo que o representa) desenvolve
argumentos para amparar e tentar legitimar suas ações violentas. Em um panorama
cinza como esse, “Réquiem”, romance da japonesa Shizuko Go, apresenta pequenas
vidas vitimadas por poderes que distorcem a noção de poder e acumulam destroços
em nome dos ímpetos de grandiosidade. E é justamente nesse percurso sem
horizonte que a obra de Go traça seu elogio à amizade e sua representação
antimilitarista.
O que pode servir como
ilustração da angústia e ao mesmo tempo de elucidação a respeito dos equívocos
mais prementes desse mundo pragmático e sentimental dos valores nacionais? Pode
uma frase ter esse poder devastador, tornando autor e leitor cúmplices de uma
dura jornada pela estrada da desilusão? (Lugar-comum e imagem seminal de uma
literatura do desengano e da perdição). “Tudo ficava mais escuro de olhos
abertos". Esta frase proferida pela jovem Setsuko Oizumi, personagem
central de "Réquiem”, que ganhou as livrarias em 1972, serve de prelúdio
para uma notável dissecação dos tormentos e infortúnios da guerra. Em uma
narrativa antilinear, com saltos temporais que, aos poucos, vão montando a
história da jovem que está a falecer em um abrigo antiaéreo, Shizuko Go nos
proporciona um retrato melancólico e de linhas pacifistas, que é um alerta à
humanidade, mas sem cair no melodrama e destacando as implicações pessoais e
políticas no engodo da paz pela guerra e da afirmação nacional pelo discurso de
uma suposta supremacia da nação.
Setsuko é uma adolescente
patriota no Japão da Segunda Guerra Mundial. Um período em que a única verdade
é a verdade oficial, estatal, que determina as respostas aos esforços de
guerra, aos quais a jovem participa trabalhando em uma fábrica. A crença na
vitória e nas justificativas para o sacrifício da população a fazem agir com
resignação e esperança num futuro consagrador para o país. Porém, esse mesmo
sofrimento físico e emocional podem ser indícios do florescimento das objeções
necessárias para deslindar a farsa.
Setsuko é uma menina que
possui as suas restrições, como a timidez, assim como a sua força, que é a entrega
serena e incondicional à amizade, especialmente a Naomi Niwa, a filha de um
suposto traidor. Separadas pela guerra, elas trocam cartas que pontuarão no
romance os dissabores do cotidiano imerso no caos. O cenário descrito capta os
temores, as decepções, mas também o sopro de vida que a manutenção da sanidade
exige. E é nesse processo que Setsuko, em seu derradeiro momento, recorda sua
vida. A referência aos olhos abertos no escuro simboliza a gradativa tomada de
consciência quando percebemos os equívocos inerentes a toda fé cega nos
emblemas nacionais sem a devida criticidade. E com a percepção nítida de que,
depois dos anos obscuros, a civilização promove um retorno à barbárie,
apoiando-se no jogo político que transforma amor à terra em obediência acrítica.
Um ciclo no qual a paz é mantida como pretensão alcançável, mas não como estado
realmente almejado.
“Réquiem” insere-se no rol
das obras que fizerem emergir apelos contundentes e dilacerantes contra as
atrocidades do militarismo e dos domínios econômico e geopolítico que levam a
bancarrotas não apenas países, mas também, e essencialmente, desejos e
sentimentos. Entre essas obras estão “O Diário de Anne Frank” e o recente “Com
Olhos de Menina: Um Diário sobre a Guerra Civil Espanhola”, de Encarnació
Martorell.
Setsuko ao longo da
narrativa/lembrança assisti à morte das pessoas mais caras a ela. Ao
revelar-nos as sucessivas tragédias que abalam a adolescente, Go constrói um
libelo contra os conflitos armados, um discurso antibélico denso e sensível. A
autora destila com elegância o “pior” remédio para a elucidação, para o
despertar: o fim das ilusões. Remédio amargo, libertador e revelador da
retórica dogmática do poder. Segundo o escritor britânico Rudyard Kipling,
"A primeira vítima da guerra é a verdade." Então, o caminho percorrido por Setsuko
carrega, a partir da inversão da lógica da não contestação, as idiossincrasias
possíveis para descobrir por si mesma o germe do espetáculo do horror contido
na aclamação nacionalista. As
adversidades que se acumulam na existência da jovem, que adotou a guerra como
uma luta pessoal, projetam o alvorecer da dúvida. Dúvida essa capaz de endossar
a amizade entre ela e Naomi, a outra menina que sofre na pele as consequências
da guerra: da interdição afetiva, quando o pai, um professor, é detido por
discordar das políticas do governo, e da sobrevivência, já que precisa
enfrentar os bombardeios e todas as armadilhas da guerra, um evento que é
sempre descomunal. Do seu abrigo que a torna um ser encurralado, que aspira ao
futuro ou à morte, Setsuko é a imagem da ruína humana.
A obra de Shizuko Go desvela
uma inquietação, um grito de revolta proferido por uma alma soturna cingida
pelos pesadelos do furor iminente que a barbárie não cansa de produzir, mas que
somente o apego à solidariedade pode combater. E, ademais, pode ser função da
arte se sobrepor à burocracia para que sejam ouvidas as vozes daqueles que já
se calaram pela brutalidade do sistema e seus jogos de guerra.
Wuldson Marcelo é mestre
em Estudos de Cultura Contemporânea e graduado em Filosofia (ambos pela UFMT).
É revisor de textos, autor do livro de contos “Subterfúgios Urbanos” (Editora
Multifoco, 2013) e um dos organizadores da coletânea “Beatniks, malditos e
marginais em Cuiabá: literatura na Cidade Verde” (Editora Multifoco, 2013).
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Um comentário
Wuldson Marcelo, nem sempre tenho tempo para ler seus artigos, mas confesso, nunca me arrependo de vir aqui e presenciar tão coerente domínio descritivo. Excelente epílogo
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