Ricardo II, poeta e
dramaturgo
Um dos mais belos dramas
históricos ingleses trata da eloquência e da teatralidade inerentes ao mundo da
política
“…saiam da noite de
Ricardo, fria,
para o de Bolingbroke
excelso dia.”
(Ricardo, ato III, cena
II)
A tragédia do rei Ricardo
II, de William Shakespeare, é um pungente drama histórico cujo argumento –
retirado da Crônica da Inglaterra, Escócia e Irlanda, de Holinshed – remete aos
primeiros séculos da história da Grã-Bretanha, quando a existência de reis,
príncipes e nobres saltava rapidamente da concretude da vida social para se
acomodar de modo sinuoso nas franjas narrativas do mito e da lenda. Filho do
Príncipe Negro, Ricardo II sucumbiu diante da revolta liderada por seu primo,
Henrique de Bolingbroke, o duque de Hereford, que voltou do exílio que lhe
havia sido imposto alguns anos antes pelo próprio monarca com a dissimulada
intenção de usurpar a coroa. É do confronto de caráter e de temperamento que
ocorre entre tais figuras que Shakespeare extrai a força e o vigor da peça,
certamente uma das obras menos conhecidas do bardo inglês.
O leitor brasileiro tem
atualmente à disposição a tradução da obra feita por Carlos Alberto Nunes na
década de 1950, que integra o terceiro volume do Teatro completo de William
Shakespeare, editado pela Agir em 2008. Infelizmente, a edição das peças
completas traduzidas por Bárbara Heliodora para a Nova Aguilar somente fez vir
a público até agora os dois primeiros volumes da coleção – o das Tragédias e
comédias sombrias e o das Comédias e romances, publicados respectivamente em
2006 e 2009 –, o que dificulta o acesso do público leitor de língua portuguesa ao
conjunto dos dez belíssimos dramas que Shakespeare dedicou à história da
Inglaterra traduzidos por uma notória especialista. (Fica aqui registrado o
fato de a área da dramaturgia ser tão mal tratada pelo mercado editorial
brasileiro. Parece impensável que especialistas ou interessados na leitura de
obras dramatúrgicas não possam encontrar nas livrarias do país boa parte das
peças escritas por Ibsen ou por Oduvaldo Vianna Filho, por exemplo).
Basicamente, há três
linhas de força que fazem de Ricardo II uma obra-prima que merece ser conhecida
pelo público leitor. A primeira delas está centrada no penetrante retrato que
Shakespeare faz do mundo da política, palco das mais variadas manifestações do
exercício do poder. “Ricardo II é a tragédia do destronamento. Mas não só do
destronamento de Ricardo: o destronamento do rei, da ideia do poder monárquico”
afirma Jan Kott em Shakespeare, nosso contemporâneo. Desse modo, o
leitor/espectador é convidado a presenciar uma série de artifícios e de
estratégias armados diligentemente pelo hábil Henrique de Bolingbroke para
desarticular a estrutura de poder que sustentava o reinado de seu primo
Ricardo. Impactante à época em que foi escrita (1595-1596) pela maneira como
retratava a deposição de um monarca, a peça não foi publicada integralmente
durante o reinado de Elizabeth, tendo sido omitida pelos editores a cena da
abdicação. Seria demais para os súditos da rainha se acostumarem com a ideia de
que um ocupante do trono inglês pudesse ser tão “naturalmente” deposto.
A segunda linha de força
da peça reside na acurada investigação que Shakespeare faz a respeito da
teatralidade inerente ao exercício da política, conduzindo a obra, assim, ao
fascinante mundo da metalinguagem que marca de modo tão expressivo o estilo do
autor. Os grandes reis shakespearianos são, a rigor, verdadeiros atores
tentando desempenhar, ora com as tintas da tragédia, ora com as da comédia, os
papéis que lhes couberam no grande teatro da vida. O centro do interesse de
Ricardo II “está no tipo de performance dramática que se requer quando se é
líder na sociedade ou, mais especificamente, rei. Todas as relações sociais são
de certo modo teatrais”, aponta o crítico canadense Northrop Frye em Sobre
Shakespeare.
A terceira e última linha
de força da peça está assentada sobre o caráter eminentemente lírico das falas
de Ricardo, vazadas em admirável estilo de poesia metafísica. Ricardo é mau
rei, mas excelente poeta, cujos inspirados lamentos e solilóquios serviram de
ensaio para o Hamlet, segundo a feliz observação de Harold Bloom. O apego ao
lirismo metafísico implica a recusa deste rei-filósofo em se comunicar na
língua degradada da política, cujo discurso competente dissimula a hipocrisia
de seus verdadeiros fins. Pensar na eloquência e na teatralidade do mundo
político que Shakespeare descortinou há quatro séculos ainda soa contemporâneo.
Sobretudo em ano eleitoral.
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