TEÇO-ME
Em Ithaca, Penélope
aguarda pelo retorno de Ulisses. São mais de vinte anos de espera. Durante o
dia, tece uma colcha. Durante a noite, desmancha-a. E, nesse abrir e fechar das
portas do tempo, encena o tumulto emocional, posterga os acontecimentos, foge
do horror.
Os versos e os poemas de
Teço-me, livro de Arriete Vilela, flertam com aventuras épicas e figuras
mitológicas – construções oníricas em que o amor e o sexo, a alegria e a
solidão, o céu e o inferno são reinventados. Utilizando-se da palavra como uma
máquina bélica empregada para derrubar muralhas e arrombar portas, Arriete não
poupa esforços para multiplicar o poder mágico do discurso poético. Nada a
detém. Quer transformar a matéria humana em enlevo. A palavra me capacita para
o que devo ser: / flor de cacto em ponta de lança.
Ciente de que não é apenas
o empilhamento de versos que caracteriza a poesia, Arriete prossegue na direção
do êxtase. Sobrevivente da luta inglória que travou contra o exagero
sentimental – momento em que é possível perceber a impossibilidade de isolar os
surtos de emoção da objetividade proposta pela razão –, soube separar os fios
da linguagem e, ponto a ponto, com cuidado e atenção, teceu o poema. Gravadas na pele nua das páginas do livro, as
palavras exprimem contenção, clareza e criatividade. Avançam até o zênite e
descobrem que Enquanto tardas, / reteço-me, / e, nas brechas do bordado, / o
destino vai compondo os meus dias, / de modo ora gentil, / ora quase isso.
Quando não se escora no
feitiço que emana dos substantivos, verbos e adjetivos, o poema desafina,
desaba, definha. Para tentar impedir essa erosão, Arriete elabora uma
estratégia (ou um ardil) que está aquém dos portões gradeados, / sem acesso aos
pretextos / da ficção. O poder de fabular (confabular) com as imagens que se
perderam nas voragens humanas se expande nas vertigens originárias da poética e
tenta exprimir o relato da ausência de
apenas um homem solitário / banido de si mesmo ou de uma mulher que tudo faz
para que Deus fique sabendo de mim, / todo dia, / verso a verso.
No espaço geográfico das
sensibilidades propostas por Teço-me, os interstícios são preenchidos com
entusiasmo, deslumbramento, excitação, pathos e hybris. É na tecelagem do
poema, imagem simbólica daquele (homem, tema, desassossego) que um dia foi
embora e deixou para trás um rastro de inconstâncias, que surge o retecer da
dor, o desenlace das felicidades artificiais. Diante das âncoras prisioneiras /
dos rochedos, as tormentas no peito angustiado, / aprisionado pela saudade, a
inquietação não se transforma em calmaria. Nada é preciso ou precioso – formas
com que multiplica as agonias.
Acho que a poesia estava
entranhada / na minha pele, / sempre à tua disposição, declara Arriete,
evocando o canto das sereias. Entre ser amarrado ao mastro do navio e o
mergulho nas profundezas do mar, ao leitor (Ulisses a-pós-a-moderna-idade) não
é fornecida a mínima possibilidade de fuga. O poema – grego, alagoano,
brasileiro – é tessitura, teia, rede, tecido, colcha, concha, imensidão.
Poema 39
Enquanto tardas,
teço-me.
Com finíssimos fios
de aço, inscrevo-me na
linguagem que sou
e busco a sintonia dos
fossos
– inconscientes? –
nas entrelinhas.
Enquanto tardas,
desteço-me
– e é quando os açoites da
tua palavra ferina
esporeiam o dorso da minha
poesia.
Enquanto tardas,
reteço-me,
e, nas brechas do bordado,
o destino vai compondo os
meus dias,
de modo ora gentil,
ora quase isso.
Raul
J.M. Arruda Filho, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008),
publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no
Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional,
segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias
como se fossem uvas”.
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