AS MULHERES POETAS NA
LITERATURA BRASILEIRA(28ª)
LUCIA FONSECA (1940) poeta
carioca, formou-se em história natural e trabalhou como pesquisadora em
genética. Começou a escrever regularmente no início da década de 70, publicando
poemas em suplementos literários de alguns jornais. Invenções do Silêncio
(1980) é seu primeiro livro de poemas. Rede Fluvial (1983) veio na sequência e
recebeu o prêmio Emílio Moura da Sec. de Cultura do Estado de Minas Gerais. O
Paraíso era Antes(2008) é seu último livro. Antes dele, publicou em 2007,
Cantares.
Trânsito
"Vim para morrer. Trago
comigo
os panos de linho claro, mão
fechada, um lenço
e o gesto do recém-nascido.
Ao pescoço,
sete voltas do cordão.
Medalha.
Quem disse que trouxe nos
olhos abertos
lendas de antigas infâncias?
Quem disse que, das mãos,
escapou-me a ânfora,
lançando ao chão, em cacos,
o vinho?
Vem para morrer tão
simplesmente,
como caem as folhas e se
apagam os cigarros
no final de um ciclo.
Decerto o que tinha de
cumprir, cumpri.
Embora esperasse mais.
(Somos sempre uns príncipes em pensamento).
Ainda as vísceras se
esforçarão em seu inocente exercício.
Ainda o pulso latejará por
obrigação de mais um dia.
O sol pousará no horizonte.
Pela janela ainda verei a lua
nascer dourada no mar.
Então partirei, madrugada.
Deixo - infelizmente -
o quarto desarrumado,
a cama desfeita
os papéis em desordem..
NOTURNO II
Eu creio em noites
RAINER MARIA RILKE
Aqui é noite.
Definitiva noite
como dentro de um fruto.
Um peixe que se percebesse
só no oceano
talvez sentisse medo.
E no entanto é só que ele
nada
o mais das vezes. Aqui é
noite.
Apalpo sementes no ventre
escuro do sono.
Tudo é tão quieto, calado,
enrodilhado em pelúcia.
Que longas, as gestações!
O mendigo, o palhaço, o
príncipe, o bêbado, o triste
se fazem assim, no escuro —
só mais tarde, sob as luzes
serão coroados.
Nessa hora, entre todas, a
mais silenciosa,
imóveis dormem sonhos e
poemas — sementes na bruma.
Ouvir-lhes o silêncio, o
sono,
confiar — eis tudo.
VINHAS DE MAIO
Vinhas de maio — de quando
madrugam as rosas.
Vinhas do fundo mar,
de pensamentos de neblina e
azul.
De neblina e azul teus
gestos,
as pequenas mãos submarinas.
Em vermelho abriste caminho
para o mundo,
em vermelho te cortaram o
cordão.
E chegastes do fundo da
caverna
com uns restos de treva
colados à pele,
expondo no ventre, por
cicatrizar,
o sinal selvagem da tua
impureza.
Depois ainda te vi lavado,
ungido de óleos e essências
e vestido de branco,
como para secretos ritos.
E do berço agitavas os
braços
como de uma barca
pedindo que te salvassem.
Mas porque cheiravas a sono
e cólica,
como um dia cheiraram teu
pai e tua mãe,
isento ainda do leite,
desligado mesmo do nome,
porque eras coberto de
penugem
e tinhas uns restos de asas
— eras tu —
ah, eras tu salvavas.
ANA MARIA LOPES (1948)
embora carioca, a poeta considera-se brasiliense. Jornalista, trabalhou nas TVs
Nacional e Alvorada, sucursal de O Globo e TV Câmara. Foi premiada como poeta
em 1967(concurso literário patrocinado pela Embaixada de Portugal) e 1981(concurso
de poesia promovido pela Editora Abril). Publicou poemas na antologia Poetas
Brasileiros Hoje(1995) e lançou o livro de poemas Conversas com Verso(2006).
Eu estou aqui
você está aí
Se acaso eu vou para aí
Você vem para cá
Há entre nós, inconteste,
um computador
– barricada –
que nos serve de atalho
para a fuga do contato
é o desamor.com
LUA E CORPO
Uma lua incerta batia
quando em quando
seu claro no meu corpo
Queria me despir de sua luz
procurando o breu.
Mas com grande mestria
a lua investia
seus dedos luminados
procurando meus pelos
explorando minhas cavernas
e sem nenhum barulho
dava seu mergulho
em águas mucosas.
Seus punhais, seus raios
jorravam o clarão
e pouco a pouco
a lua incerta e meu corpo nu
se amalgamaram
- assim como fazem os astros
-
e reinventamos a luz.
NÃO ME ACORDE
Se eu estiver sonhando
não me acorde
porque basta uma noite
para me manter rediviva
uma noite para gerar meu
espanto
e espantar minha rotina.
Mas se por acaso estiver
tecendo
as tramas do matutar
ou colchoeira
enchendo de paina a retina
não me chame
porque basta um gemido
para me acordar.
A PALAVRA
Ninguém percebeu
a palavra pendurada por um
fio
Ninguém atinou para seu
sentido
nem notou que pairava muda
sob todas as cabeças.
Carregava seus mistérios
cheio de sílabas.
Ninguém a queria nem (a)
prendia
E a palavra ficou balançando
em postura de enforcado
sem traço esclarecedor
para perplexidade de todos.
DANIELA GALDINO ( ) poeta de Itabuna, mestre em
literatura e diversidade cultural, é professora de literatura na UNEB.
Organizou os livros Tessitura Azeviche: diálogo entre as literaturas africanas
e a literatura afro-brasileira(2008) e Levando a Raça a Sério(2004), participou
de várias antologias e publicou Vinte Poemas Caleidoscópicos (2005) e
Inúmera(2012).
INÚMERA
Eu tenho a síndrome de Tim
Maia.
Eu tenho as varizes de Clara
Nunes.
Eu tenho os vícios de Piaf.
Eu tenho a orelha de Van
Gogh.
Eu tenho a perna que falta
ao Saci.
Eu tenho o olfato de Freud.
Eu tenho o cansaço de
Amélia.
Eu tenho o peso de Maria.
Eu tenho as dermatoses de
Macabéa.
Eu tenho a cusparada de
Sofará.
Eu sou a linha tênue que une
os xipófagos.
Eu sou uma interrogação
vagando com pressa.
Eu sou um insulto atirado à
queima roupa.
Eu tenho atalhos ainda não
percorridos.
Eu tenho palavras
desgastadas e nulas.
Eu tenho uma voz penífera e
cortante.
Eu confesso: sou intrusa,
sou inúbil, sou inúmera.
MULHER ABJETA
Não sei desenhar
não sei fazer conta
só entendo de assustar
palavras.
Puxo o verbo pelo rabo
finco dente no dorso.
Quero des-edificar lares
provocar divórcio
entre significante e
significado.
Aí será o oco da linguagem
varrido pelo avesso...
Encosto a boca na orelha dos
vocábulos
e sussurro:
“Deus é a nossa criação
necessária”.
Eles habitam pântanos de
pânicos.
Estão prontos para
representar meus terrores.
Eu não espero pelo dia
em que o meu nome flutuará
nas páginas de uma
hagiografia.
Não sei qual evangelho rege
as impurezas da minha arte.
Eu transbordo excrescências,
dúvidas,
luminosidades.
E... só entendo de assustar
palavras.
SAUDADE AMANHECIDA
meus pés contêm mapas
distorcidos por cartógrafos
loucos.
e esses pés tocam sem
cuidado
a profusão de fios...
rastros... fluxos...
eu esqueço os ares de moça
ignoro compêndios
transito por rotas
imprecisas:
língua percorre lágrimas
boca engole axilas
dedos iluminam côncavos
buceta grita espumas
corpo bambeia na cadência
da memória indistinta:
seus jorros trêmulos
em meus pontos cardeais.
ALVORECIDA
Acordei com um sol enorme
dentro de mim
abrasaram-se os órgãos
vitais
raios trafegaram minhas
veias
borbulharam pensamentos de
lama
nos lençóis freáticos da
memória
o sol tomou conta de tudo
expandiu felonias esquecidas
ergueu-se um centenário
baobá
no terreiro inabitado de mim
o frêmito deste nascimento
alimentou espetáculo
frondoso:
sombra nas costas do dia
vertigem na borboleta.
MARIZE DE CASTRO (1962)
poeta potiguar, é formada em Comunicação Social e exerce a profissão de
jornalista. Autora dos livros Esperado Ouro(2005), Poço, Festim, Mosaico (1996)
e Marrons crepons marfins (1984). Tem textos publicados em revistas nacionais e
internacionais e já publicou poemas no Jornal do Brasil, Estadão e revista
Poesia Sempre. Foi elogiada por Haroldo de Campos.
Néctar
A verdade aproxima-se.
Olha-me com os olhos
abismados da beleza.
Não sou a mulher
que corta os pulsos e se
joga da janela
nem aquela que abre o gás
nem mesmo a loba que entra
no rio
com os bolsos cheios de
pedra.
Sou todas elas.
Escrever me fez suportar
todo incêndio
– toda quimera.
Erma
Recolho-me tão profundamente
que tudo me alcança:
mísseis, desastres, lanças.
Recostada ao rosto de Deus
pedi-lhe a fé perdida
a palavra antiga –
invencível.
Ele me deu o mar no nome
e uma fome borgeana,
dizendo-me:
Eis sua herança, jovem
senhora
de velhíssima alma e
furiosas lembranças.
Solar
Cadáveres despertam depois
do amor.
Lágrimas choram e se
estrangulam.
Não sou a mulher que você
vê.
Não sei o que é o inverno
- nunca vi a neve.
O meu ofício é reinventar
asas para o sol.
Muralha
Porque me abasteci, estou de
volta.
Trago comigo coisas
abandonadas.
Coisas que os homens jogaram
fora:
placentas, gânglios,
guirlandas, guelras.
Retorno alimentada.
Perigosa.
Mais mar. Mais aberta.
Hoje descobri que quando
estou dormindo
Deus segura minha mão e a
leva para seu rosto.
Para Ele
sou mulher e menina.
Para o mundo
sou silêncio e desordem.
Lassidão e rumor.
Uma muralha que sempre
desejou ser flor.
Rubens Jardim,
67 anos, jornalista e poeta. Foi redator chefe Gazeta da Lapa e
trabalhou no Diário Popular, Editora Abril e Gazeta Mercantil.
Participou de várias antologias e é autor de três livros de poemas:
ULTIMATUM (1966), ESPELHO RISCADO (1978)e CANTARES DA PAIXÃO (2008).
Promoveu e organizou o ANO JORGE DE LIMA em 1973, em comemoração aos 80
anos do nascimento do poeta, evento que contou com o apoio de Carlos
Drummond de Andrade, Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo, Raduan
Nassar e outras figuras importantes da literatura do Brasil. Organizou e
publicou JORGE, 8O ANOS - uma espécie de iniciação à parte menos
conhecida e divulgada da obra do poeta alagoano. Integrou o movimento
CATEQUESE POÉTICA, iniciado por Lindolf Bell em 1964, cujo lema era: o
lugar do poeta é onde possa inquietar. O lugar do poema são todos os
lugares... Participou da I Bienal Internacional de Poesia de Brasília
(2008) com poemas visuais no Museu Nacional e na Biblioteca Nacional.
Fez também leituras no café Balaio, Rayuela Bistrô e Barca Brasília. E
participou da Mini Feira do Livro, com o lançamento de Carta ao Homem do
Sertão, livro-homenagem ao centenário de Guimarães Rosa. Teve poemas
publicados na plaquete Fora da Estante, (2012), coleção Poesia Viva, do
Centro Cultural São Paulo. Páginas na Internet: Site: Rubens Jardim e Facebook: Rubens Jardim
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