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Foto: Roberto Higa |
Manoel de Barros, o poeta
das miudezas espera o infinito
Aos 98 anos, Manoel de
Barros já não escreve. Declina em silêncio, cercado pela família e por cadernos
de poemas inéditos
O mais importante poeta
brasileiro vivo deixou de escrever. Aos 98 anos, Manoel de Barros passa os dias
deitado numa cama em sua casa da Rua Piratininga, num bairro nobre da cidade de
Campo Grande. Alimenta-se por um tubo instalado em seu estômago, por onde os
enfermeiros ministram todo tipo de medicamento. Não anda nem consegue falar.
Ouve pouco e enxerga mal. À tarde, é colocado numa cadeira de rodas para que
saia da cama. O resto do dia fica praticamente imóvel, olhando para o teto.
Seu irmão mais novo, Abílio
de Barros, volta aborrecido sempre que vai visitá-lo. “Ele está enjaulado em si
mesmo. Já viveu demais e quer ir embora. Sua vida é quase vegetativa. É um
absurdo que a medicina o continue segurando desta forma”, diz. A mulher,
Stella, cinco anos mais jovem, casada com Manoel há mais de meio século, não
permite a visita de amigos. Quem cuida dos aspectos práticos da casa é sua
única filha viva, a artista plástica Martha de Barros. “Ele está inválido, não
caminha mais, não usa as mãos. Nossa vida está muito dura”, diz.
Esta morte em vida parece
mais trágica para um homem tão bem-humorado e de personalidade dócil como
Manoel de Barros. Acontece num momento em que sua obra poética faz barulho no
mercado editorial brasileiro. Em outubro, venceu o contrato que ele mantinha
havia quase 15 anos com a editora Leya. A filha Martha, que cuida dos direitos
autorais, avisou que não renovaria e passaria a obra do pai a outra editora.
Contratou uma das principais agentes literárias do país, Lúcia Riff, que cuida da
obra de poetas como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e
Mario Quintana, para negociar um novo contrato. O resultado foi anunciado na
última sexta-feira. A partir do ano que vem, Manoel de Barros será editado pela
Alfaguara, selo da editora Objetiva.
VOZ NATURAL
Acima, a fazenda Santa Cruz,
no Pantanal, onde Manoel viveu dez anos sem escrever. O silêncio decantou seu
estilo. Abaixo, Manoel de Barros e a mulher, Stella, em 2008 (Foto: Lucas de
Barros)
Foi uma disputa acirrada,
porque Manoel é um dos grandes vendedores de poesia no Brasil. Quando entrou na
editora Record, no final dos anos 1990, foi o primeiro poeta a figurar na lista
dos mais vendidos depois da morte de Drummond. Na editora Planeta, uma brochura
com a série Memórias inventadas vendeu 450 mil exemplares, distribuídos nas
escolas de São Paulo. É um número excepcional tratando-se de poesia.
Esse reconhecimento veio
tarde. Aos 98 anos, Manoel de Barros sentiu o gosto do sucesso por menos de
duas décadas. Na maior parte da vida, pagou suas próprias publicações. A glória
tardia o alcançou já com problemas de saúde e prestes a viver momentos
dramáticos, com a perda de seus dois filhos homens. Em 2007, o filho João, com
50 anos, morreu num acidente aéreo. Ele pilotava um monomotor com destino à
fazenda de Manoel, a 350 quilômetros de Campo Grande, praticamente inacessível
por terra nos períodos de cheia. Quando pousava, um bezerro entrou na pista e
bateu no trem de pouso. João foi projetado para fora do avião e não sobreviveu
aos ferimentos. Era ele quem administrava todo o patrimônio rural do pai.
Manoel não conseguiu ir ao enterro, depois disso praticamente não saiu mais de
casa. Em julho do ano passado, o filho mais velho, Pedro, morreu depois de ter
sofrido três derrames. Ele tinha esquizofrenia. Apesar de ser por vezes
agressivo, Manoel preferiu mantê-lo em casa em vez de colocá-lo num sanatório.
Por causa de problemas de saúde, passou os cinco últimos anos na cama, sob os
cuidados de Manoel e Stella. Depois da morte de Pedro, Manoel começou a
definhar. Há cinco meses, disse ao irmão Abílio, sussurrando, que daquela
maneira não lhe interessava mais viver.
“Ele sempre falou que a pior coisa do mundo é a velhice”, diz o
jornalista Bosco Martins, amigo há 30 anos. Mais que agarrado à vida, é a vida
que se agarra a ele.
Manoel inaugurou um estilo
único na poesia brasileira. “Ele encontrou a equação perfeita entre natureza e
linguagem, inovadora para a história da poesia”, diz Alberto Müller, professor
da Universidade Federal Fluminense. Manoel se intitulou poeta das coisas
imprestáveis, amante dos objetos jogados fora. Preferiu olhar para baixo, tirar
lirismo das pequenezas. Por isso, sua obra foi considerada o “apogeu do chão”.
Em seus poemas aparecem musgos, sapos, pedras, rãs, árvores e caracóis. “Gosto
de alguma coisa na infância que eu tenha mijado nela”, costuma dizer.
Essa linha criativa tem a
ver com suas origens. Nasceu em Cuiabá. Aos 2 anos mudou-se com a família para
o meio do Pantanal. Passou a infância tomando banho de rio, vivendo em casas
com telhado de palha e conversando com passarinhos. “Infância milionária para
meu temperamento”, dizia. Quando completou 8 anos, o pai o colocou num colégio
interno em Campo Grande. Ali, conheceu a cultura grega, os sermões do Padre
Antônio Vieira e o poeta francês Arthur Rimbaud. A junção entre a alta cultura
e a natureza primitiva forjou seu estilo de escrita. Manoel conta que um padre
do internato, percebendo as duas paixões e a incapacidade do jovem aluno para
os aspectos práticos da vida, afirmou: “Não presta para nada, há de ser poeta”.
O início da produção foi
tumultuada. Seu primeiro livro, Poemas concebidos sem pecado, de 1937, não tem
ainda o estilo que o consagrou. A tiragem foi de 21 exemplares e não teve a
menor repercussão. Nessa época, Manoel vivia na cidade que era o centro da vida
cultural e política do país, mas apenas tangenciava o círculo dos grandes
escritores. Escreveu uma carta a Clarice Lispector, que nunca respondeu. Pediu
emprego a Drummond no Ministério da Educação e jamais foi atendido. Criou
coragem para tocar a campainha na casa de Manuel Bandeira. Antes que Bandeira
abrisse a porta, desceu correndo escada abaixo. Só travou contato mais efetivo
com Guimarães Rosa, com quem compartilha uma sintonia de linguagem e temática
interiorana. Ainda assim, conversou com ele de mãos trêmulas.
Esse isolamento das rodas
literárias foi uma constante em sua existência. Está relacionado ao estilo de
vida que adotou. Em 1949, dois anos depois de se casar com Stella, seu pai
morreu de infarto. Ele herdou uma fazenda de 14.000 hectares no Pantanal, a
Santa Cruz. Como passava dificuldades financeiras no Rio de Janeiro, decidiu
mudar-se para lá. Teve de construir casa, cercar a área, erguer os currais e
trazer o gado. Passou dez anos nesse isolamento, sem rádio nem televisão, com o
primeiro vizinho a quilômetros de distância. Não escreveu praticamente nada
nesse período. Acordava de manhã, montava no cavalo, passava o dia atrás do
rebanho. O isolamento o ajudou a fertilizar e decantar sua poesia. Depois dessa
experiência, publicou o livro Compêndio para uso dos pássaros, de 1960, em que
apresentava uma linguagem única e quase primitiva, voltada para a natureza e
para as miudezas do cotidiano. A obra foi premiada pela Academia Brasileira de
Letras. Distanciava-se tanto da poesia do Brasil daquela época que teve pouco
acolhimento do público. O título curioso fez com que Manoel recebesse ligações
de criadores de pássaros, perguntando se não se tratava de um guia prático.
Desde essa época, a rotina
dele passou a ser praticamente a mesma, até meados do ano passado. Com a
fazenda já estabelecida, mudou-se para Campo Grande e dizia ter comprado seu
ócio. Todos os dias, na parte da manhã, subia para o escritório no segundo
andar da casa, que batizou de “lugar de ser inútil”. Dedicava-se a sua
produção. “Neste recanto, invento artices. Olho para cima, leio e releio
páginas de livros, respondo a cartas, faço aviões de papel, vou até a infância
e volto”, disse em entrevista. Ali escreveu 20 livros de poesia. No final dos
anos 1980, o jornalista Millôr Fernandes começou a falar na grande imprensa
daquele poeta inventivo que subvertia a linguagem e tirava o homem da posição
central. Nessa época, assinou contrato com a Civilização Brasileira, sua
primeira editora, e começou a aparecer nacionalmente. Depois foi para a Record.
Lá, o Livro das ignorãças vendeu 60 mil exemplares, número surpreendente para a
época. O editor Pascoal Soto, da Leya,
foi buscá-lo numa época em que suas vendas não estavam tão boas. Sugeriu a
Manoel aventurar-se pela literatura infantil, campo em que foi bastante
premiado. Pascoal se emociona ao falar dele, com quem manteve uma amizade
próxima. Eles trocaram quase uma centena de cartas, que Pascoal ainda preserva.
A notícia de que a filha Martha não pretendia renovar o contrato do pai o pegou
de surpresa. “Isso me corrói por dentro, é uma grande tristeza pessoal”, diz
Pascoal.
Martha não justificou os
motivos da mudança. Desde que seu irmão João morreu, os negócios da família
ficaram desorganizados. Manoel passou a precisar cada vez mais dos direitos autorais.
Hoje, essa receita é uma fonte importante no orçamento da família, comprometido
com medicamentos e enfermeiros. O potencial comercial dos direitos é grande.
Além da republicação das obras, o acervo de Manoel guarda raridades que
renderiam vários projetos editoriais.
Um exemplo são os mais de
100 cadernos de rascunho que Manoel preservou ao longo da vida. Escrevendo
sempre com lápis e letra miúda, ele anotava suas ideias em cadernos de papel
sem pauta que ele próprio produzia. Essas anotações são versos soltos. Depois de
organizados e passados a limpo, se transformavam em poemas. Apenas 30% deles
foram publicados. O restante é um material precioso, que pode ser fonte
riquíssima de inéditos. Martha diz que prometeu ao pai só dar algum destino aos
cadernos depois de sua morte. Infelizmente, esse dia parece se aproximar cada
vez mais rápido.
2 comentários
Foi com grande satisfação que li esta reportagem sobre o poeta Manoel de Barros,ao qual não conhecia.E é triste saber que seus dias estão acabando...que a família não recebe as visitas,pois como também sou poeta,gostaria muitíssimo de conhecer a sua obra...Desejo de todo coração que Deus lhe dê paz em seus últimos dias assim como, a família!
Não conhecia Manoel de Barros?????
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