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Segredos de Jorge Amado [MARCELO BORTOLOTI]

Segredos de Jorge Amado


O escritor sempre fez mistério sobre seus tempos de militância. Obras inéditas ajudam a entender o período mais obscuro de sua biografia

MARCELO BORTOLOTI
Artigo publicado na Revista Época 

No final de 1947, o escritor Jorge Amado chegou em casa depois de um dia de trabalho, desabotoou o paletó, afrouxou a gravata, retirou um revólver da cintura e colocou-o em cima da mesa. Ele era deputado federal pelo Partido Comunista, e sua mulher, Zélia Gattai, tomou um susto ao ver a arma. Jorge, que sempre fora um pacifista, disse que as discussões estavam quentes na Câmara, e o Comitê Central determinara que todos os deputados do partido andassem armados para se proteger. Jorge obedeceu – mas carregava seu revólver sem balas. O caso revela a disciplina com que ele seguia as diretrizes do Partido Comunista, comportamento que interferiu em sua ficção durante 25 anos de militância.

Preso três vezes desempenhando funções importantes na cúpula do partido, Jorge escreveu livros de pura propaganda ideológica. É o caso de O mundo da paz, em que se refere ao líder comunista Josef Stálin nos seguintes termos: “Mestre, guia e pai, o maior cientista do mundo de hoje, o maior estadista, o maior general, aquilo que de melhor a humanidade produziu”. Isso acabou em 1956, quando vieram à tona as atrocidades cometidas no regime de Stálin na União Soviética e vários intelectuais romperam com a ideologia comunista, Jorge entre eles. Ele se afastou do partido, não permitiu a reedição de livros sectários como O mundo da paz e fez o que pôde para que esse período de sua trajetória fosse esquecido. Trata­va-o de forma extremamente superficial em suas obras autobiográficas. Por isso são tão significativos dois arquivos a que ÉPOCA teve acesso com exclusividade. Eles trazem vários inéditos dessa fase, entre eles um romance, uma peça, cartas e poesias que ajudam a entender o período mais obscuro da trajetória de Jorge.



O primeiro acervo era literalmente uma mala de documentos deixada por Jorge na Argentina, quando ele fugia da ditadura de Getúlio Vargas, entre 1940 e 1941, período em que escreveu uma biografia laudatória do líder comunista Luís Carlos Prestes. A mala dele ficou com uma colega de partido chamada Rosa Scliar. Ela tentou devol­vê-la. Depois de abandonar o comunismo, Jorge não quis mais saber dos papéis. Sem destino possível para o material, mas também sem coragem para destruí-lo, Rosa guardou tudo até sua morte, em 1996. A filha dela, Leonor, professora da Universidade Federal de Santa Catarina, descobriu o conjunto de papéis entre as coisas da mãe. Há dois anos, transferiu o acervo para o Núcleo de Literatura e Memória da universidade, que agora organiza e estuda os 1.400 documentos. “Ainda estamos estudando o material. Certamente ajudará a descortinar um período da vida de Jorge Amado sobre o qual praticamente não há informação”, afirma Tânia Regina Ramos, professora da universidade, que coordena a pesquisa no acervo.

O segundo acervo é o arquivo particular de Jorge, apreendido pela polícia política na casa dele em 1948, ano em que seu mandato de deputado federal foi cassado. Na época, os agentes do presidente Eurico Gaspar Dutra levaram suas anotações, rascunhos de livros e documentos como prova de seu envolvimento com a cúpula do Partido Comunista na União Soviética – motivo alegado para cassar os deputados da legenda. O material ficou desaparecido por 60 anos. Acreditava-se que fora destruído. Ele foi encontrado agora no meio de antigos relatórios da polícia, no Arquivo do Estado do Rio de Janeiro.

OS POEMAS REVOLUCIONÁRIOS

Os papéis do acervo encontrado em Santa Catarina revelam que, ainda na Argentina, Jorge se aventurou pela poesia. Ele planejava escrever um livro com o título Poemas do povo, de alto teor ideológico, pregando a revolução e o engajamento dos escritores na causa comunista. Jorge jamais falou sobre o projeto nas entrevistas que deu ao longo da vida. Nos poemas, praticamente desprovidos de valor estético, ele alfineta um dos principais expoentes da poesia brasileira, Carlos Drummond de Andrade. Compra briga com todos os colegas alheios à causa da revolução.
 
No poema “Epigrama do poeta modernista”, Drummond é caracterizado como o poeta que “anda de graça no auto do ministério”, enquanto o povo passa fome na rua. Drummond não é citado nominalmente, mas era o único poeta da época que andava em carro oficial. Ele era na ocasião chefe de gabinete do ministro da Educação e Saúde do governo Vargas, Gustavo Capanema. O poema surpreende porque Jorge não costumava criticar abertamente os escritores que de alguma forma estavam envolvidos com o Estado Novo. O próprio Graciliano Ramos, membro conhecido do partido, trabalhava para o governo como inspetor de ensino.

Na introdução que escreveu para esse livro, Jorge, tomado por furor, abriu fogo contra os escritores que ele chamava de “oficiais ou semioficiais”. Ele justificava a importância de seus poemas como forma de protesto, num momento em que a poesia brasileira, segundo ele, se entregava e se vendia. Colocando todos os poetas nacionais num mesmo pacote, afirmava que esses “fazedores de versos”, descrentes do povo, “se caparam, engordaram e, bonitinhos e efeminados, traem toda a grande tradição da poesia brasileira”. O ataque generalizado não obedecia a uma razão concreta. Na época, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e mesmo Drummond produziam poemas socialmente engajados. “É preciso saber a que tipo de poeta ele se referia, porque os modernistas estavam longe desta alienação”, diz o crítico literário e membro da Academia Brasileira de Letras Antônio Carlos Secchin.

Jorge ficou no exílio até 1942, quando o Brasil ingressou na guerra ao lado dos Estados Unidos e da União Soviética. Diante dessa aliança com os russos, a orientação da cúpula do partido foi que os militantes no estrangeiro voltassem ao país para participar da luta contra o nazismo. Supunha-se que Vargas daria anistia aos refugiados comunistas. Não foi o que aconteceu. Jorge voltou e foi preso imediatamente, ao lado de outros colegas. Foi enviado ao presídio da Ilha Grande, no Rio de Janeiro – onde Graciliano Ramos fora encarcerado em 1936. Jorge passou cerca de dois meses confinado. Depois foi posto em liberdade, com a condição de se mudar para Salvador e de apresen­tar-se semanalmente na Delegacia de Ordem Política e Social. Seus passos foram monitorados até 1945, quando o Partido Comunista voltou à legalidade.

O ROMANCE INÉDITO

O ponto alto do acervo que Jorge deixou na Argentina é um romance inédito e inacabado, Agonia da noite (o título, e apenas o título, foi reaproveitado em 1951, numa das partes da trilogia Os subterrâneos da liberdade). Jorge começou a escrever o romance, inédito ainda no Brasil, no final da década de 1930, fase de intensa militância. Na ocasião, o jornal Dom Casmurro, onde ele trabalhava, publicou vários anúncios avisando que o livro estava em preparo e seria lançado em setembro de 1940. Informava que seria um romance com seis personagens, cuja ação se passava em 12 horas. Também pelo jornal, é possível saber que o livro não foi concluído até Jorge se mudar para a Argentina.

Ele levou os originais para o exílio e tentou publicar o livro em espanhol, sem grande sucesso. Quando voltou ao Brasil, a situação política mudara, já que o país estava aliado à União Sovié­tica na Segunda Guerra Mundial. Embora preso inicialmente, Jorge foi beneficiado com a liberdade pelo governo de Vargas. Agonia da noite passou a ser um livro indesejável. “Houve uma espécie de trégua. O objetivo dos comunistas passou a ser a luta contra o nazismo, e a disputa partidária interna ficou em segundo plano”, diz o professor Eduardo de Assis Duarte, da Universidade Federal de Minas Gerais, um dos maiores especialistas do país em Jorge Amado.

A correspondência mostra que os militantes eram orientados a esquecer diferenças anteriores, para se concentrar na luta contra a Alemanha. Com essa perspectiva, Jorge deixou na Argentina papéis que poderiam comprometê-lo, como a correspondência trocada com outros comunistas, os poemas panfletários e o romance inacabado. Trouxe também na bagagem os manuscritos do livro Terra dos sem-fim, texto sem grande carga ideológica, que escrevia na ocasião. Esse livro escapa da cena política da época e fala da disputa entre coronéis do cacau na Bahia no começo do século passado. Foi publicado em 1943.


A PEÇA (Foto: Reprodução)

O romance inédito, militante demais para aquele momento mais amistoso com o governo, narra a história de um grupo de jovens comunistas às vésperas de um levante. Eles se reúnem num sítio, e a trajetória de cada personagem é contada em perspectiva, mostrando suas paixões e questionamentos diante de uma possível morte na luta armada. Embora a ação central seja um golpe comunista, a narrativa se concentra principalmente no drama afetivo dos militantes, sem tratá-los como heróis. Um deles tem um romance com a mulher de um companheiro preso, outro quer apenas que seu nome saia nos jornais, um terceiro se acovarda e prefere ficar na cama na hora da luta. O romance foi abandonado com 80 páginas e um enredo já bastante consolidado.

A militância política de Jorge Amado contribuiu de duas formas para a leitura de sua obra. Primeiro, favoreceu sua difusão internacional. Fez dele um dos brasileiros mais lidos no exterior. Publicados em Moscou em 1935, seus livros Cacau e Suor foram os primeiros romances da literatura brasileira traduzidos para o russo. Seara vermelha  foi publicado integralmente no suplemento literário do L’Humanité, jornal comunista de Paris. Seus romances circularam livremente por União Soviética, China e a antiga Tchecoslováquia, numa época em que a entrada de livros era restrita nesses países. Segundo, a contaminação ideológica de algumas de suas obras fez levantar sérias ressalvas quanto a sua independência como escritor. Na biografia de Prestes, há inúmeras passagens que fariam qualquer biógrafo envergonhar-se: “Quanto ao equilíbrio e à imparcialidade, de referência a Luís Carlos Prestes são coisas que não se faz necessário medir. Porque nele os lados negativos não surgiram nunca, nem nos dias de luta, nem nos dias de triunfo, nem nos dias de prisão”, diz a introdução do livro.

A produção de Jorge mudou radicalmente de perfil a partir de Gabriela, publicado em 1958, quando ele já deixara o Partido Comunista. Seus romances ganharam um tom mais sensual, pitoresco e anedótico, e os enredos também se tornaram mais sofisticados e verossímeis. Os heróis do partido deram lugar a personagens femininas fortes, como Tereza Batista ou Dona Flor. “Sempre que predominou o desejo de se ajustar à linha ideológica do partido, ele fez obras menores. Do ponto de vista da criação literária, de meados dos anos 1940 até 1956 foram anos praticamente perdidos”, diz o professor de literatura José Maurício de Almeida, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O DRAMATURGO OCASIONAL

Com a queda do regime Vargas, Jorge candidatou-se a deputado pelo Partido Comunista nas eleições de 1945. Obteve 15 mil votos e foi eleito, ao lado de companheiros como o guerrilheiro Carlos Marighella. Algum tempo depois o partido caiu novamente na ilegalidade, dessa vez por consequência da aliança do Brasil com os Estados Unidos durante a Guerra Fria (1945-1991). O Partido Comunista foi acusado de seguir ordens de Moscou, e todos os seus deputados foram cassados em janeiro de 1948. Depois da cassação, Jorge partiu sozinho para a Europa. Deixou mulher e filho, que seguiram mais tarde. Um relatório da polícia política encontrado no Rio mostra que os espiões do governo acreditavam que essa viagem tinha fins militares: “O escritor é um emissário do Sr. Luís Carlos Prestes, ou melhor, do Partido Comunista do Brasil, para uma série de entendimentos com os dirigentes do Kominform, na Bulgária, na Polônia e em Moscou. O senhor Jorge Amado vai articular-se com os elementos que, sob os auspícios diretos do Krem­lin, supervisionarão a ofensiva russa na América do Sul”.


SÓ COISAS BOAS O líder comunista Luís Carlos Prestes. Ele foi tema de uma biografia laudatória (Foto: Arq. Estadão Conteúdo)

A polícia invadiu a casa de Jorge pouco depois de sua partida. Zélia Gattai, suamulher, carregando no colo o filho de 1 ano, recebeu ameaças dos homens que reviravam tudo. “Diga a seu marido que vamos beber o sangue dele”, disseram. Num grande saco de plástico, os policiais amontoaram livros, documentos, cartas e papéis avulsos. Os jornais noticiaram o episódio na época como um “espetáculo de selvageria”, promovido pela polícia do presidente Eurico Gaspar Dutra. O acervo apreendido, agora encontrado, reflete a produção de Jorge na época em que deixou o país. Depois de eleito deputado, ele dizia não ter mais tempo para se dedicar à literatura. Ficou cinco anos sem publicar nada. Como precisava de dinheiro, os projetos para teatro e cinema passaram a ser um importante complemento orçamentário.

No acervo de 1948, há o esboço de uma peça de teatro inédita, chamada  Bahia de Todos os Santos. No livro memorialístico Navegação de cabotagem, Jorge nega a existência dessa obra, ao afirmar que sua única experiência com teatro foi a peça O amor do soldado, publicada em livro, mas nunca encenada. A peça inédita é bastante marcada pelo viés ideológico. Narra a história de amor entre dois escravos. Nela, Jorge tenta associar a abolição da escravatura no Brasil a uma possível revolução comunista que libertaria todos os povos.

Bahia de Todos os Santos  foi encomendada em 1947 pelo diretor e dramaturgo português Chianca de Garcia, cujos musicais faziam grande sucesso. A peça foi anunciada nos jornais como uma opereta, com argumento de Jorge e canções de Ary Barroso. A dupla dividia também a vocação política, embora em lados opostos do espectro ideológico – Ary Barroso era vereador no Rio de Janeiro, eleito pela União Democrática Nacional (UDN). A única letra de música preservada, sem partitura, é “Canção da Bessarábia Libertada”. De caráter panfletário, a canção tenta associar o avanço do Exército russo sobre a Europa nazista, na Segunda Guerra Mundial, e a abolição da escravatura no Brasil, meio século antes.

O texto de Jorge serve bem ao projeto político do Partido Comunista. Desde a década de 1930, os comunistas tentaram se aproximar do movimento negro no Brasil. “Jorge Amado lutava por essa aproximação tanto em sua literatura como em sua atuação parlamentar. Como deputado, foi ele o autor da lei que legalizou os cultos religiosos africanos no Brasil”, diz Eduardo de Assis Duarte. Não há registro sobre o motivo que levou o projeto a não ir adiante. A peça nunca foi encenada.

Morando na França na condição de deputado exilado, Jorge passou a cumprir uma agenda de dirigente político. Participou de comícios, assembleias de operários, fez palestras, além de dar entrevistas criticando aquilo que julgava ser uma postura subserviente da América Latina ao governo americano. Entre outras ações, ajudou o poeta comunista chileno Pablo Neruda, também exilado, a entrar clandestinamente em Paris, escondido no porta-malas de seu carro. Por esse tipo de atuação, foi banido com a família da França e passou a morar na Tchecoslováquia.

Viajou então por vários países de regime comunista e escreveu livros cheios de proselitismo ideológico. O mundo da paz é dessa época e lhe valeu o Prêmio Stálin da Paz em 1953 – uma espécie de Nobel do mundo comunista. Foi também na Tchecoslováquia que Jorge começou a ouvir os primeiros rumores sobre os gulags, campos de trabalho forçado na União Soviética. De volta ao Brasil, Jorge se afastou do partido. Iniciou a fase de suas obras-primas, como Gabriela, Os velhos marinheiros e  Tenda dos milagres. A partir daí, os críticos de esquerda passaram a acusá-lo de deixar os temas importantes de lado para fazer apenas “folclore”. Na segunda fase de sua carreira, Jorge entrou em todo tipo de polêmica. Nessa época, já não era obrigado a levar o revólver na cinta.

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