AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (31ª POSTAGEM) [Rubens Jardim]
Anunciação
O verbo, crio-o devagar, no corpo,
como a flor e a palavra: pouco a pouco.
Protegido em redoma não de vidro,
mas de angústia e de sangue o seu tecido.
Vestimenta de carne, pois de corpo
é o verbo que anuncio, hoje tão novo
como o primeiro homem foi nascido
da palavra semente, do seu grito.
Como o primeiro homem no seu lodo
é o verbo resolvido no meu corpo.
Verbo crescendo lesto, arredondado
como o primeiro fruto sazonado.
Corpo e navio, levo uma pergunta
que é palavra, destino, e coisa, e fruta.
Palavra, pois é verbo do meu verbo
que humilde e pressurosa hoje percebo
e guardo aflita, e exausta, e tensa, enquanto
não romper minha carne seu quebranto
de verbo libertado do meu ser,
pronto para a aventura de viver
Salto moral
Sondar a possibilidade do salto
e a profundidade do
abismo.
Formular o desenho preciso.
Vôo e queda, a mesma dimensão
e
altura.
Vôo e queda recortam no ar
a mesma figura.
Saltar de dentro
de si mesmo
Como quem pula o muro da infância,
A cerca que esconde os
pomares
do mundo e limita o corpo
e seu agreste crescimento. E
restringe
o homem e seu poder.
Saltar para o desconhecido
sem redes
sob o corpo.
O salto moral
Diante de mil trapézios oscilantes
e
luzes e o pavor dilacerante
da platéia. A comovente platéia
da
autopiedade
Saltar
para a verdade
Natal
Cada dia nasce
um novo menino
na palha, na seda,
no feno, no linho.
Cada dia nasce
um novo destino
que sempre começa
no mesmo menino.
A estrela de cada
natal é a medida
palavra que escapa
em face da vida.
Na ficha, a palavra
festiva traduz:
Antônio, Isaías,
Ricardo ou Jesus.
O sexo no espelho
O amante
predispunha o espelho
para duplicar o amor.
Múltiplos corpos,
avidez do resgate,
a noite lúdica.
Hoje, no espelho,
a solidão em dobro.
MIRIAM ALVES ( ) Escritora e poeta com projeção internacional, sua poesia surge como ação e missão de atuar e interagir no espaço social. Publicou dois livros de poemas: Momentos de Busca, (1983) ; Estrelas nos Dedos, (1985) e está presente em diversas antologias e teses em universidades do Brasil e do exterior.
Íntimo véu
Arregaço o ventre
corcoveio no ar
gemo
Você?
Tira o meu último véu.
Paisagem Interior
A madrugada respira acordes
estrela brincalhona enluará
sonata dum sonho rola asfalto
O céu todo em sono confunde-se
o sol ilumina-o com
um sorriso madrugada
respinga orvalho nos telhados
A face do céu confunde-se
meio em noites, meio em dias
desponta uma aurora
nasce uma criança brincalhona
toda envolta em madrugada.
Acorda dia!
há fome de esperança!
Cuidado! Há navalhas!
As palavras de concessões
são navalhas
retalham minha pele
diluem meus sentimentos
soltam-nos ao ar
feito partículas poluidoras
não diluídas
Palavras de concessões
são mordaças
aveludam os sons do passado
ensurdecem sentimentos
forçam minha negação
pressionam o meu ser
Navalhas querem podar
nas veias
o jorro das emoções
ligando-as nos tubos de mentiras virulentas
As navalhas das concessões
quebrar-se-ão, quebrar-se-ão
no fio lento
da minha dura vivência. (Alves 1985: 27)
Calafrio
O sorriso gela
a porta do paraíso prometido
A tarde cobre-se de frio
grita
esconde-se atrás dos
casacos
faz esculpir aquela saudade
do lugar
jamais percorrido.
Escorrem feito sorvete
as esperanças derretidas
no ardor do querer.5
Todo implícito
não o sentido absoluto
tampouco o tudo
só esta certa presença
que não pretende
que não pergunta
nem responde
livre da voz
livre do tempo
mais do que livre
o todo implícito
no fragmento
rápido isolado rasgo
quis sustentar rastros e areias
por desconhecer a caligem
que adviria do aço maior
e do pó
combinar palavras luz
eu quis
por desconhecer que as moscas sim
são mais preparadas
que às deusas sim
são mais úmidas
que as primaveras
mais rotas
e a poesia estava cheia de
moscas tigres primaveras
ineptos ao toque
os ossos
que colecionamos
no mundo enlameado
nomes todos juntos
isto é o mundo
isto são as meninas de mãos dadas
a uma única velocidade
quando figuro e noticio
a vida simplificada
em dálias e deserto
tudo um uníssono
e a tarde estava cheia de
cromos
que saltam sem dor nenhuma
mãos que nunca mais
hesitam
são agora
dedos de escritura
dedos artesianos representam
os lapsos e o lençol
em chama e em cinza
eu que era único
e indivisível
agora criei tentáculos
ávidos
que não controlo
roubam vermelhos vivos
que nem sei para que servem
desejam tanto, usurpam
violam cantos sagrados
espalham cinzas
riem
esbofeteiam
cinicamente esfarelam
pedaços lícitos de pão
distribuem as fichas
embaralham cartas
trapaceiam noite adentro
alheios ao meu desconforto
trazem ouro profano para casa
abarrotam mesas
e eu, mudo e multifacetado,
olho a insana riqueza
que meus próprios braços acumulam
e tentando escutar meu vão discurso
não consigo
porque as frenéticas mãos que não controlo
aplaudem ruidosamente
Dicotomia
Estou só.
Não quero o homem que me quer
E há um sol que eu quero em meu rosto.
Crescer é fogo, amor, consome.
Perdoe o medo, o nojo, a fome.
Amar é doce, enjoa.
Não quero o pássaro que tenho nas mãos.
Eu preciso é dessa ave que voa.
Amor
Por todo o caminho, te levo comigo,
como quem carrega o próprio coração nas mãos, pulsando.
Como quem bebe um vinho precioso,
deixando que o líquido se espalhe e molhe o rosto.
Por todo o caminho, te levo comigo,
como quem arranca um punhado de mato e põe no bolso,
só para sentir a raiz entre os dedos.
Te levo comigo, sobre os ombros,
até o alto da mais alta das montanhas.
Homem
Meu homem chega cansado.
O suor grudado na pele.
E eu, que o imagino calmo, me deito,
rosto contra o travesseiro —
e aguardo.
Ele deita seu peso sobre meu corpo,
e seu cheiro é forte,
como o de um cavalo.
Sinto seu hálito no meu pescoço,
suas pernas forçando passagem
entre minhas pernas.
O amor não tem rosto, penso.
É essa pressão — pele contra pele
— esse atrito de pêlos.
Quero dormir e sonhar que nos amamos.
E antes de me possuir, ele me despe, delicado.
Quero dormir e sonhar que ele chega.
Só em sonho, posso tê-lo sem fúria.
Paz
Invento a paz: panos brancos nas janelas.
Os burgueses da pensão estranham – canto.
Eu, que nunca cantei.
Atendo no balcão os mortos todos,
procurando achados e perdidos.
E vivo. Eu,
que nunca ousei.
O luto, que cobriu de negro
este quarto, hoje é passado.
Enterrado no quintal dos fundos.
Que as crianças entrem e desarrumem tudo,
rasgando em algazarra meus retratos.
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