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depois de atravessar um longo Oceano conturbado [Tatiana Carlotti]

depois de atravessar um longo Oceano conturbado

A criança brincava com a palavra solidão. Palavra escondida no armário, dentro de uma mala, em uma caixa de tênis. Um bom esconderijo e ao abrir a porta, depois a mala e, por fim, a tampa, a menina sentiu na ponta dos dedos o peso sólido da solidão. E ficou encantada com a profusão colorida de ãos que, enfim libertos, pareciam bolhas que brotavam da palavra. Bolhas de um vazio compacto.
Para a menina, a solidão se revelava um bichinho daqueles bem esquisitos. Daí que carregou a solidão consigo e com ela adornou a cama feito pelúcia. Uma péssima ideia. O primeiro berro foi o da irmã ao chegar do colégio e dar de cara com a solidão entre os travesseiros da caçula. O segundo foi o da babá com direito a Credo e comecinho da Salve Rainha. Alertada, assim que pisou em casa, a mãe bateu na porta com cuidado. Gastou o verbo, em vão. "Quando crescer passa", acreditou.
Mas o que passou foi o tempo.
A solidão cresceu, peso sólido de sucessivos esvaziamentos, e acabou robusta desenvolvendo uma incrível capacidade de refletir em sua superfície acobreada o que sobre a solidão cada um acreditava. E era um festival de imagens medonhas - caveira, barata gigante, bicho de pé, tomate podre, vermes saltando dos olhos - que, definitivamente, concluiu a moça, o mundo tinha pavor da solidão.
Sim, a solidão sabia e sofria com isso. Mas a moça lhe dava colo, preparava um chá de erva-doce e acarinhava um cadinho mais apertado. Quentinha, a solidão retribuía: esparramava-se e a sensação era a de ter chegado na praia depois de atravessar um longo Oceano conturbado.
As pessoas continuaram a ver caveira, barata gigante, bicho de pé, tomate podre, vermes saltando dos olhos na solidão... Então as duas fizeram um pacto. Pelo menos quando chegasse visita em casa, a solidão iria se esconder dentro do armário. Mesmo assim, a mulher se sentia culpada, porque a casa vivia cheia e muitas vezes a solidão tinha de empurrar um pouquinho a porta para respirar.
De lá prá cá, porém, as duas cresceram.
Agora é a solidão que prefere não ser incomodada por gente chata que ainda vê nela os seus próprios fantasmas. "Preguiça de cigarra", ela cunhou o termo num dia em que as duas cismaram em exterminar as formigas que apareciam na casa. A mulher até fica com certo receio, porque às vezes a solidão adormece durante semanas. Ela chama e nada...
Aí a mulher sai atrás de companhia. Não sem antes, claro, dar uma espiadinha para ver se está tudo bem e se a solidão ainda respira. Agora é a solidão quem determina a hora. E até diz para a mulher parar de se preocupar e viver um pouco. Então, a mulher vai, mas sempre volta. Geralmente exausta de gente.
É quando a solidão salta do armário, recarregada de energia. Agora é ela que dá colo à mulher, prepara um chá de erva-doce e acarinha um cadinho mais apertado. A sensação continua a mesma e como a solidão continua mal vista, talvez seja importante repetí-la: é a de ter chegado na praia depois de atravessar um longo, mas longo mesmo, Oceano conturbado.


Tatiana Carlotti. "Eu sou a somatória de tanta coisa e tanta gente. Em suma: eu gosto de mixirica. De secar o corpo no Sol. De lavar roupa na mão. De tomar chuva com os pés descalços na grama. De cavalgar. De cair dentro do livro. Daquela dor depois que a gente gargalha. De causo em volta da fogueira. De quando o pára-quedas abre e a gente plana. De varar a madrugada escrevendo. Da palavra que escapa da boca. De caminhar da Consolação ao Paraíso. De passar café para os meus amigos. De amor. De carinho. Do meu gato, Balzac. Do meu pé de maracujá, Onegin. De flor. Eu gosto muito, mas muito, da aurora. E sou louca pelo outono. E você?" SITE: SobremargenS

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