depois de atravessar um longo Oceano
conturbado
A
criança brincava com a palavra solidão. Palavra escondida no armário, dentro de
uma mala, em uma caixa de tênis. Um bom esconderijo e ao abrir a porta, depois
a mala e, por fim, a tampa, a menina sentiu na ponta dos dedos o peso sólido da
solidão. E ficou encantada com a profusão colorida de ãos que, enfim libertos,
pareciam bolhas que brotavam da palavra. Bolhas de um vazio compacto.
Para
a menina, a solidão se revelava um bichinho daqueles bem esquisitos. Daí que
carregou a solidão consigo e com ela adornou a cama feito pelúcia. Uma péssima
ideia. O primeiro berro foi o da irmã ao chegar do colégio e dar de cara com a
solidão entre os travesseiros da caçula. O segundo foi o da babá com direito a
Credo e comecinho da Salve Rainha. Alertada, assim que pisou em casa, a mãe
bateu na porta com cuidado. Gastou o verbo, em vão. "Quando crescer
passa", acreditou.
Mas o
que passou foi o tempo.
A
solidão cresceu, peso sólido de sucessivos esvaziamentos, e acabou robusta
desenvolvendo uma incrível capacidade de refletir em sua superfície acobreada o
que sobre a solidão cada um acreditava. E era um festival de imagens medonhas -
caveira, barata gigante, bicho de pé, tomate podre, vermes saltando dos olhos -
que, definitivamente, concluiu a moça, o mundo tinha pavor da solidão.
Sim,
a solidão sabia e sofria com isso. Mas a moça lhe dava colo, preparava um chá
de erva-doce e acarinhava um cadinho mais apertado. Quentinha, a solidão
retribuía: esparramava-se e a sensação era a de ter chegado na praia depois de
atravessar um longo Oceano conturbado.
As
pessoas continuaram a ver caveira, barata gigante, bicho de pé, tomate podre,
vermes saltando dos olhos na solidão... Então as duas fizeram um pacto. Pelo
menos quando chegasse visita em casa, a solidão iria se esconder dentro do
armário. Mesmo assim, a mulher se sentia culpada, porque a casa vivia cheia e
muitas vezes a solidão tinha de empurrar um pouquinho a porta para respirar.
De lá
prá cá, porém, as duas cresceram.
Agora
é a solidão que prefere não ser incomodada por gente chata que ainda vê nela os
seus próprios fantasmas. "Preguiça de cigarra", ela cunhou o termo
num dia em que as duas cismaram em exterminar as formigas que apareciam na
casa. A mulher até fica com certo receio, porque às vezes a solidão adormece
durante semanas. Ela chama e nada...
Aí a
mulher sai atrás de companhia. Não sem antes, claro, dar uma espiadinha para
ver se está tudo bem e se a solidão ainda respira. Agora é a solidão quem
determina a hora. E até diz para a mulher parar de se preocupar e viver um
pouco. Então, a mulher vai, mas sempre volta. Geralmente exausta de gente.
É
quando a solidão salta do armário, recarregada de energia. Agora é ela que dá
colo à mulher, prepara um chá de erva-doce e acarinha um cadinho mais apertado.
A sensação continua a mesma e como a solidão continua mal vista, talvez seja
importante repetí-la: é a de ter chegado na praia depois de atravessar um
longo, mas longo mesmo, Oceano conturbado.
Tatiana Carlotti. "Eu sou a somatória de tanta coisa e tanta
gente. Em suma: eu gosto de mixirica. De secar o corpo no Sol. De lavar roupa
na mão. De tomar chuva com os pés descalços na grama. De cavalgar. De cair
dentro do livro. Daquela dor depois que a gente gargalha. De causo em volta da
fogueira. De quando o pára-quedas abre e a gente plana. De varar a madrugada
escrevendo. Da palavra que escapa da boca. De caminhar da Consolação ao
Paraíso. De passar café para os meus amigos. De amor. De carinho. Do meu gato,
Balzac. Do meu pé de maracujá, Onegin. De flor. Eu gosto muito, mas muito, da
aurora. E sou louca pelo outono. E você?" SITE: SobremargenS
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