Outro dia, enquanto olhava
as novidades em uma livraria, descobri uma edição recente de Neuromancer, o
célebre romance de ficção científica. Comprei o exemplar. Para ler depois, bem
depois, uns dois ou três anos depois. A velha história de sempre. Como cabe aos
cínicos, ter cópias dos clássicos (aqueles livros que todo mundo, ou melhor,
todas as pessoas que merecem algum crédito, consideram como importantes, e,
que, por alguma razão, você nunca leu) equivale a uma parede repleta de
troféus. Essa ideia (independente das sutilezas que a envolvem) serve para
construir, sem o mínimo vigor/rigor, muitas vigarices. O mundo intelectual (e
isso se torna a cada dia mais difícil de negar) não costuma primar pela
honestidade. Em outras palavras, poucos são os que conseguem resistir ao golpe
de mestre (logo depois de consultar o resumo no Google): Veja, esse eu li,
clássico total, gostei muito, grande história.
Um fluxo descontínuo de
imagens – o enredo de Neuromancer pode ser sintetizado no número exponencial de
frames expostos na interface de algum equipamento contaminado por vários tipos
de vírus letais. Mas, felizmente, é um pouco mais. Nas 311 páginas do romance
(na edição da Editora Aleph), a história de Henry Dorsett Case – um hacker
nômade em um mundo anômalo – está conectada com forças divergentes e fora de
controle. Para conseguir o antídoto contra a toxina mortal que foi implantada
em seu corpo, ele precisa realizar uma série de trabalhos pouco ortodoxos, os
dedos voando sobre o teclado. Utilizando como cenário as contradições que unem
o desenvolvimento tecnofetichista e a barbárie pré-moderna (e que anestesiam
Ciba City, Night City, Villa Straylight, Istambul, Berna, Berlim, Tóquio, Rio
de Janeiro, Zion e Sprawl), o horizonte de eventos se transforma em versão hardcore
de um faroeste virtual. Isto é, nos melhores momentos de um vídeo game que
enlouqueceu, torna-se difícil distinguir o real e o virtual. A imprecisão entre
as duas áreas adensa o conteúdo narrativo – momento em quea alta tecnologia e a
decadência moral se amalgamam e institucionalizam o horror.
Em Matrix (o ciberespaço), o
pacote de inovações tecnológicas (clones, robôs, dromes, microchips,
inteligência artificial) parece interminável, assim como suas
aplicações/implicações na existência de cada uma das personagens.Velocidade da
luz. Industrialização do frenesi e da alienação. Algoritmos alfanuméricos
anunciando o predomínio da estética feérica. Subculturas niilistas se
multiplicando em um Estado totalitário, dependente dos conglomerados econômicos.
As fronteiras entre o Ocidente e o Oriente se dissolvendo em explosões de
urânio, plutônio e policarbono. (...) rostos olhando por entre uma floresta de
neon, marinheiros, marginais e putas, sob um céu de prata envenenada...
Neuromancer inaugura a
ficção cyberpunk (um subgênero literário
de difícil conceituação) e está aquém de mero exercício aritmético com sinapses
fragmentadas: origamis e alimentação orgânica, narcotráfico e violência
extrema. A ficção enevoada pelo fulgor de velas coloridas. Adrenalina e
dopamina em doses maciças ao alcance do touchscreen. Como uma holografia
tridimensional – playgrounds soltos no espaço – projeta o advento dos quatro
cavaleiros do Apocalipse, representações literárias da fragilidade humana. Em
um mundo onde hackers e crackers se confundem – e confundem o mundo em que se
movimentam –, impera a estratégia de sobrevivência contra incontáveis
predadores. Nada está a salvo. Nem mesmo a sanidade e o conhecimento –
ferramentas indispensáveis para tentar impedir que os erros sejam repetidos.
Em alguns momentos não há
maneira de contornar a placa sinalizadora para o advento do anjo da destruição:
todos os sistemas imunológicos estão desconectados. A contaminação de corpos,
cérebros, lugares e arquivos digitais se torna uma ameaça inexorável.
Simultaneamente, a te(n)são sexual, embalada pelo cheiro de suor e ganja,
engendrada pelas próteses sensoriais instaladas em homens e mulheres, resulta
em desejo, em gozo. Independente do fato de Linda Lee e Molly serem apenas
faces do delírio de Henry Dorsett Case, quem pode lhe negar o desfrute do
prazer? E então ele estava dentro dela, efetuando a transmissão da velha
mensagem. Todos os espaços livres no corpo (literário, político, anatômico) são
bancos de dados, são projeções incandescentes – produzidas pelo consumo
constante de betafenetilamina (ou o equivalente).
O exibicionismo (o obsceno
em seu grau máximo) da vida ordinária, sem sentido, sem propósito, caracteriza
a sociedade do espetáculo, a overdose de imagens – onde nada pode ser considerado
velado, vedado, vendado ou vetado. Paradoxalmente, tudo se transforma em motivo
para o cerceamento das informações. Nada é mais assustador do que perceber que
a liberdade – limitada pelas figuras de
retórica, pelo discurso vazio – não passa de alucinação.
A vida de Henry Dorsett
Case, segundo Ratz, pode ser resumida em duas frases: Linda para uma tristeza
mais doce e a rua para dar o golpe de misericórdia. E o complemento desse drama
não envolve compaixão, lástimas, sonhos despedaçados ou quaisquer outros tipos
de anestésicos: Você precisava deste mundo construído para você, esta praia,
este lugar. Para morrer.
Neuromancer inventa o
futuro: caótico, irreal, artificial, fascista, desumano.
Raul
J.M. Arruda Filho, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008),
publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no
Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional,
segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias
como se fossem uvas”.
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