Birdman e o humano,
demasiado humano
Outro dia fui ao cinema com
o marido para assistir Birdman, premiado com o Oscar de melhor filme. Fiquei
surpresa por um filme como este ter sido reconhecido pela “Academia” como o
melhor, já que tem um estilo bem diferente. Antes que alguém pense que não
gostei do filme, digo que é justamente o contrário: gostei muito. Birdman conta
a história de um homem, um ator, que foi muito famoso por ter sido, em três
filmes, Birdman, um super-herói-pássaro. A vinte anos da época em que a
história acontece, o ator havia se recusado a participar da filmagem do quarto
Birdman. Desde então, sua carreira decaiu muito e ele luta agora para levar
adiante uma peça de teatro, que adaptou a partir de um livro.
Mas nada será tão fácil
quanto parece. O filme escancara o humano com seus fracassos, com suas dores de
existir, com seus medos e angústias. O personagem principal tem uma relação
difícil com a filha, ex-usuária de drogas que se queixa das ausências do pai,
desde a infância. Ela agora trabalha com o pai, auxiliando nos detalhes da
organização da peça, mas odeia o que faz, e em uma oportunidade, diz a ele que
tudo aquilo é uma droga, que ele o faz para se sentir importante, mas que na
realidade nada daquilo é importante, assim como ele não o é. Uma das cenas que
mais me tocou.
Fora isso, cada um dos atores que participa da
peça tem seu mundo particular e conflituoso, o que interfere o tempo todo no
trabalho. Eles fazem ensaios abertos ao público antes da estreia e a sensação
que nós espectadores temos é de tensão, de que algo dará errado a qualquer
momento. E dá mesmo. Um dia um ator superstar dá piti no meio da apresentação
porque percebe que sua bebida alcoólica foi substituída por água, outro dia o
Birdman, num intervalo de cena, sai pelos fundos do teatro para fumar e seu
roupão fica preso numa porta que só se abre por dentro. Resumo: ele tem que
voltar ao palco e agora está só de cueca e meia, terá que dar a volta pela rua,
cheia de gente, até conseguir entrar pela porta principal e encenar novamente.
Com isso, ao andar quase
pelado pelas ruas, em tempos nos quais cada um busca seus quinze minutos de
fama na internet, as pessoas o reconhecem e gravam pelo celular sua caminhada
de cueca pela rua. Rapidamente o vídeo tem milhares de visualizações e é como
se ele voltasse a existir.
Como se o enredo já não
fosse bastante pesado, Birdman ouve constantemente uma voz que o deprecia, que
diz ser ele um fracasso e etc. Aos poucos fica mais claro que a voz é do
próprio super-herói que ele encenou há tantos anos, o homem pássaro aparece
diante de nossos olhos. Numa mistura de realidade e fantasia – delírio e
alucinação talvez? Não importa – Birdman consegue um super sucesso na noite de
estreia em que ele, desvairado, leva ao palco uma arma de verdade para fazer a
última cena: a do suicídio de seu personagem. Nós espectadores temos a certeza
de que ele morreu de fato, o sangue voa no palco, mas por um erro de cálculo, o
tiro detona seu nariz, que precisa ser refeito em uma cirurgia plástica.
Na cena do hospital sentimos um alívio por
saber que ele está vivo, que a peça foi um sucesso e por ver que a filha, de
certa forma, faz as pazes com ele. Mas no instante em que fica sozinho no quarto,
vai até a janela e imaginamos que saltará para a morte. A filha entra
novamente, procura por ele, vai até a janela, olha pro chão procurando o pior
e, em seguida olha pra cima, pro céu e esboça um sorriso. Nós não sabemos do
que ela ri, mas imaginamos que ele voou, como um pássaro que era. Imediatamente
lembrei de Manoel de Barros, quando dizia que não queria morrer, mas sim, virar
passarinho. Birdman voa, segundo nossa imaginação.
Então, eu descia as escadas do cinema em total
estado de enlevo, pensando nas grandes questões humanas – a morte, a dor, o
fracasso, o ódio, a inveja, o medo, etc – quando ouço o casal que vem atrás
dizer:
- Duas horas perdidas na
vida. Que bosta de filme.
Meu marido teve que me segurar para que eu não
rodasse o pé e imobilizasse a ambos num golpe mortal ninja. Então eu ouvi
direito? Tempo perdido? Bosta de filme? O sangue afinou nas veias e as ventas
abriram de raiva. Mas ultimamente tenho tentado praticar a meditação zen e
consegui me acalmar. O que seria então um bom filme, que fizesse duas horas
valerem à pena? Cinquenta tons de cinza, campeão master blaster de bilheteria?
Fui pra casa triste pensando no que nossa cultura tem valorizado como belo e
bom. O que há de humano, demasiado humano, agora é feio, ruim, bosta. Depois
pensei que o casal pode não ter entendido o filme e me compadeci.
Nem sempre entendo todos os
filmes, mas quando não entendo, por pura ignorância minha, sempre uso uma
tática. A tática é ficar quieta. Será que não deveríamos pensar antes de falar?
Se o filme ganhou um prêmio tão importante, será que dizer que o filme é bosta
não denuncia que tenho bosta na cabeça? Se tenho bosta na cabeça, provavelmente
pastelões me agradam e não há problema nenhum em gostar de pastelão. O problema
é desmerecer tão facilmente um trabalho realmente humano. Esses dias li num
comentário de um filme que não me lembro, mas me marcou muito o que o autor disse: é fácil gostar de personagens
belos, másculos, sensuais, quero ver mesmo é gostar dos feios, velhos,
corcundas e fracassados, que refletem o que realmente somos.
Então a dica do dia é: se
não entender o filme, coloque a mão no queixo e, com uma leve inflexão de
cabeça, faça cara de inteligente e vá pesquisar sobre, antes de dizer que é
bosta.
Isloany Machado - Psicóloga clínica (CRP 14/03820-0) Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Fórum do Campo Lacaniano de MS. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Despensadora da ciência e costuradora de palavras por opção.
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