Vassili Grossman - a grande
testemunha dos horrores da Segunda Guerra Mundial
VIDA E DESTINO, a obra-prima
do escritor russo Vassili Grossman, comparada aos clássicos Guerra e paz e
Doutor Jivago, é o resultado de uma análise original do totalitarismo, regime
no qual, segundo ele, se pede aos indivíduos que deixem de se considerar a
fonte de suas próprias ações, renunciem a sua autonomia e obedeçam as leis
impessoais da história, proclamadas pelos poderes públicos.
Em 2009 com Um escritor na
guerra – Vasily Grossman com o Exército Vermelho (1941-1945), o público
brasileiro teve seu primeiro contato com um dos mais importantes escritores do
século XX, podendo ser uma boa introdução à vida e à obra do autor e uma
leitura esclarecedora da conjuntura e da sociedade retratadas em Vida e
destino, a obra-prima de Grossman, recém-lançado pela Editora Alfaguara, com
tradução e Prefácio de Irineu Franco Perpétuo.
Nascido em 1905, em
Berdichev, Ucrânia, Iósif Solomónovch Grossman alterará seu prenome para
Vassili ao iniciar sua atividade literária com os bem-sucedidos romances Boa
sorte e Stepan Kolchugin. Em 1935 é admitido no Sindicato de Escritores
Soviéticos e, quando a Wehrmacht invade a URSS, se apresenta ao Exército
Vermelho e é aceito como correspondente de guerra. Ao deferir seu pedido, David
Ortenberg, editor do jornal Estrela Vermelha (Krasnaya Zvezda), argumenta: “Ele
conhece a alma das pessoas”. Enviado para o front, ao lado do também
correspondente Pavel Troganovsky, e do fotógrafo Oleg Kworrine, recolherá farto
material para seus escritos, todos rigorosamente baseados em fatos reais, como
o romance O povo imortal, publicado em série em 18 edições consecutivas do
Estrela Vermelha.
Entre 1941 e 1945, ele
acompanhará todas as fases da guerra, desde os primeiros meses de retirada das
tropas do Exército Vermelho, a defesa de Moscou, as batalhas na Ucrânia, as
lutas nas ruas de Stalingrado, os combates de tanques em Kursk, até a chegada à
Polônia e a libertação de Berlim, onde relatou como o 8º Exército Russo, antes
uma força disciplinada, saqueou casas e estuprou milhares de jovens e mulheres
alemãs. Um dos primeiros a chegar a Treblinka, fará amplo relato do que viu,
denunciando em seguida a existência dos campos de concentração e o Holocausto.
Depois da guerra será também testemunha da campanha de Stalin contra os judeus,
que os considerava uma etnia próxima da origem do capitalismo.
A batalha de Stalingrado
Com 3 milhões de soldados, o
exército alemão inicia, em junho de 1941, sua investida em solo russo e
conquista uma cidade após a outra. “Sim, um tempo sem piedade – um tempo de ferro
chegou”, escreveu Grossman, que registrou a queda de Kiev, onde mais de meio
milhão de soviéticos foram mortos ou capturados, sendo, porém, recebidos com
simpatia pela população ucraniana, comportamento cuja razão remonta às
campanhas de Stalin pela coletivização forçada da agricultura que resultou em
mais de 7 milhões de mortos.
“No tempo da coletivização
geral ele [o personagem Ikónnikov] viu os trens especiais abarrotados com as
famílias de cúlaques desapropriados. Viu pessoas extenuadas caindo por terra
para não mais se levantar. Viu aldeias ‘fechadas’, extintas, com portas e
janelas bloqueadas. Viu a prisão de uma camponesa, uma mulher esfarrapada de
pescoço fibroso e mãos enegrecidas pelo trabalho, para a qual a escolta olhava
com horror: enlouquecida de fome, ela tinha comido os dois filhos”.
Em seguida, Grossman insiste
em ser transferido para o Fronte Sudoeste, onde a grande ofensiva de Hitler, em
1942, para conquistar os campos de petróleo do Cáucaso, dará início à batalha
de Stalingrado, cujo resultado ele descreve:
“Stalingrado está
incendiada... Está morta... Muitas pessoas estão parcialmente insanas. (...) A
cidade morreu depois de tanto sofrimento... Agora não há mais qualquer lugar
para recuar. Cada passo para trás é um grande erro, e provavelmente fatal.
(...) À luz dos foguetes veem-se os prédios destruídos, a terra coberta de
trincheiras, os bunkers nos penhascos e nas valas, buracos profundos protegidos
do mau tempo por pedaços de lata e tábuas de madeira”.
É no desenrolar da batalha de
Stalingrado que Grossman situa seu romance, cujos protagonistas lutam para
sobreviver tanto ao terror stalinista quanto ao extermínio dos judeus.
“Começou a guerra, uma das
mais cruéis e terríveis que se abateram sobre a Rússia em mil anos de
história.”
“Nesses murmúrios de mudos e diálogos de
cegos, nessa mistura espessa de gente unida pelo terror, pela esperança e pela
desgraça, no desentendimento e inimizade de gente que fala a mesma língua,
manifestava-se de maneira trágica uma das calamidades do século XX.”
O universo do romance
No centro da narrativa estão
as famílias Chápochnikov e Chtrum: Viktor é um cientista russo egoísta e
bem-intencionado em rota de colisão com o Estado até o momento em que Stálin
percebe o quão valiosas são suas pesquisas; a mãe dele, também judia, que lhe
escreve uma carta do gueto nazista em que está confinada, sabendo que logo será
assassinada; Krímov, o comissário do Exército Vermelho que de algoz passa a
vítima da paranoia estalinista, sendo esmagado pelas engrenagens do Estado que
defendia; Gênia, cujo avô foi um dos pioneiros do movimento revolucionário e dá
nome a várias ruas, vê sua sobrevivência ameaçada pelas exigências da
burocracia; e Sofía, cuja natureza maternal a faz abrir mão da oportunidade de
se salvar e segue silente para a câmara de gás com David, um bebê praticamente
desconhecido; entre outros. Grossman compõe assim um universo de categorias
humanas e suas mais improváveis reações, sem maniqueísmos. Os poucos alemães
presentes no livro não são a encarnação do mal, mas pessoas tão vulneráveis
quanto qualquer ser humano; soldados soviéticos mutilam suas mãos para se
tornarem inaptos para a guerra e são fuzilados; heroísmos, deserções e
covardias se expressam no mesquinho que pode se tornar magnânimo, no íntegro
que pode cometer um ato de vilania e no comedido que pode se tornar imprudente,
e vice-versa.
Correspondente a esse rico
mosaico humano, também os cenários são variados e heterogêneos: um campo alemão
para prisioneiros de guerra; um campo soviético de trabalhos forçados; a prisão
moscovita; a prisão de Lublianka; um centro de pesquisa, os trens que levam
judeus para os campos de extermínio, o porto de Sebastopol atacado por um grupo
de submarinos russos.
Inimigos internos e externos
Com capítulos que se conectam,
às vezes em ziguezague, o autor nos mostra diferentes ângulos de um mesmo fato
e situações antagônicas, recorrendo ainda a um narrador onisciente que pode se
ocultar na primeira pessoa.
Fragmentada, com diálogos
cáusticos, a narrativa está repleta de grandes reflexões, bem como da história
dos sentimentos de vários personagens diante do caos e do pânico, provocados
por duas forças simétricas: de um lado, o fascismo, termo genérico a que o
autor recorre para nomear o inimigo externo (da pátria russa e da humanidade),
e, de outro, o comunismo stalinista, versão do totalitarismo que se apoderou da
URSS, o inimigo interno. Perverso, este fomenta a perseguição e a delação,
suprime as liberdades e os direitos, corrompe as relações humanas, aos quais os
personagens não ficam indiferentes: em várias passagens defendem a liberdade de
imprensa, acusam Stalin de megalomaníaco e criticam o Estado, todo-poderoso,
que impõe limites à individualidade, conceito este também repudiado pelo
fascismo.
“O fascismo rejeitou o
conceito de individualidade, o conceito de ‘homem’, e opera em grandes
conjuntos. (...) O fascismo chegou à ideia de aniquilamento de camadas inteiras
da população, de conglomerados nacionais e raciais (...). O fascismo e o ser
humano não podem coexistir. Quando o fascismo triunfa, o ser humano para de
existir, restando apenas criaturas de aspecto humano que sofreram modificações
internas. Mas quando triunfa o ser humano dotado de liberdade, discernimento e
bondade, o fascismo perece, e os que haviam sido subjugados voltam a ser
gente.”,tal como a mulher que, aparentemente destruída pela dor, se debruça sobre um prisioneiro alemão pensando em agredi-lo, mas acaba por lhe oferecer um pedaço de pão, gesto cuja compreensão escapa a ela mesma.
O correspondente
contemporâneo de Guerra e paz
Vida e destino, sobre o qual
o ideólogo-chefe do PCUS, Mikhail Suslov garantiu ao autor, em 1961, que não
seria publicado “antes de duzentos ou duzentos e cinquenta anos”, apresenta a
complexa realidade da Rússia pós-Revolução de Outubro e se caracteriza por ser
um romance de ideias, com estrutura semelhante à de Guerra e paz, obra de
consulta permanente de Grossman em busca do mesmo olhar abrangente de Tolstoi,
ao qual Vida e destino é comparado e considerado seu correspondente
contemporâneo.
Para Tzvetan Todorov, em
Sobre Vida y destino, Grossman é herdeiro dos grandes prosadores russos do
século XIX: “seus personagens protagonizam debates filosóficos como em Os
demônios ouOs irmãos Karamazov, de Dostoiévski. Do ponto de vista ideológico,
está mais próximo de Theckov, pois é ele quem introduz na literatura russa esse
novo humanismo centrado nas ideias de liberdade e bondade. Liberdade entendida
em um sentido amplo, como a possiblidade de o individuo atuar como sujeito
autônomo”.[1]
O reconhecimento de Grossman
Desde a publicação de Vida e
destino, seu autor tem despertado crescente interesse. Na década de 1990, foi
objeto de duas biografias: Vasily Grossman: The Genesis and Evolution of a
Russian Heretic, de Frank Ellis, e The Bones of Berdichev, de John e Carol
Garrard. Esta última, aliás, defende que o autor foi a grande testemunha do
Holocausto, afirmando que não há um lamento aos judeus do Leste Europeu maior
que a carta que Anna Semyonovna escreve a seu filho, texto esse que serviu de
base para a “Última Carta”, encenação de Frederik Wiseman apresentada em Paris
e Nova York, cuja versão russa estreou em dezembro de 2005 em Moscou.
Em 2007, o The Wall Street
Journal considerou-o um dos melhores romances do século XX e, quatro anos mais
depois, a Rádio 4 da BBC transmitiu um radioespetáculo com treze episódios
baseados no livro, o que o levou à lista dos mais vendidos no Reino Unido.
Trecho, Capítulo 18,
Primeira Parte I, pp. 95-6
“Filhinho, como foi triste o
meu caminho até o gueto medieval. Passei pela cidade na qual trabalhei durante
vinte anos. Primeiro, passamos pela rua Svietchnáia, que estava deserta. Mas,
quando passamos pela Nikólskaia, vi centenas de pessoas que se dirigiam para o
maldito gueto. A rua ficou branca com as trouxas e os travesseiros. Os doentes
eram conduzidos pela mão. O pai paralisado do doutor Margulis era levado sobre
uma manta. Um jovem carregava uma velha nos braços, e, atrás dele, vinham a
mulher e os filhos, carregando as trouxas. Gordon, o gerente da mercearia,
gordo, ofegante, usava um sobretudo com golas de pele, e o suor lhe escorria
pelo rosto. Fiquei pasma com um jovem que ia sem nada, de cabeça erguida,
levando um livro aberto diante de si, com uma cara altiva e tranquila. Mas
quantos ao lado dele estavam ensandecidos e aterrorizados!
“Nós íamos pelo meio da rua, enquanto as
pessoas ficavam nos olhando das calçadas.
“Durante algum tempo
caminhei com os Margulis, ouvindo os suspiros de compaixão das mulheres. Mas o
sobretudo de inverno de Gordon só despertava gargalhadas, embora, creia-me, ele
fosse mais assustador do que cômico. Vi muitos rostos conhecidos. Alguns nos
cumprimentavam de leve, dando adeus, e outros desviavam o olhar. Acho que nessa
multidão não havia olhares indiferentes: havia os curiosos, havia os impiedosos,
mas algumas vezes divisei olho em lágrimas.
“Eu vi duas multidões: os
judeus de sobretudo, gorro, as mulheres de xales quentes, e, na calçada, uma
segunda, com vestes de verão. Blusinhas claras, homens sem casaco, alguns de
camisa bordada ucraniana. Parecia-me que, para os judeus que andavam na rua, o
sol já tinha deixado de brilhar, e eles marchavam sob o frio intenso de
dezembro.
“Na entrada do gueto,
despedi-me de meu companheiro de viagem, que me mostrou o lugar junto à cerca
de arame farpado onde deveríamos nos encontrar.
“Sabe, Vitienka, o que eu
senti, ao chegar ao arame farpado? Achei que ia sentir terror. Mas, ao entrar
naquele curral de gado, minha alma ficou mais leve. E não ache que é porque eu
tenho uma alma servil. Não. Não. As pessoas ao meu redor tinham um destino
comum: no gueto eu não precisava ir pelo meio da rua, como um cavalo, e também
não havia os olhares de ódio; os conhecidos me fitavam nos olhos, e ninguém
fugia do meu encontro. Naquele curral, todos tínhamos o estigma que os
fascistas nos haviam pregado, e por isso esse estigma me ardia menos no peito.
Aqui eu não me sentia como gado privado de direitos, mas sim como um ser humano
infeliz. Por isso minha alma ficou mais leve.”
[1] Sobre Vida y destino.
Textos de Vassili Grossman, Tzvetan Todorov e Efim Etkind. Galaxia Gutenberg,
Círculo de Leitores. Barcelona, 2008.
Vida e destino
Vassili Grossman
Tradução e Prefácio de
Irineu Franco Perpétuo de Irineu
Editora Alfaguara, 916
páginas, R$ 89,90; E-book, R$ 29,90.
Dida
Bessana é paulistana, bacharel em história, jornalismo e
produção editorial, com especialização na Alemanha, e pós-graduada em
jornalismo cultural na PUC-SP. É editora-assistente na Editora Unesp.
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