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SERGIO Y. VAI À AMÉRICA [Raul Arruda Filho]

SERGIO Y. VAI À AMÉRICA
 

O lugar do desejo sexual costuma ser um dos mais significativos tabus da literatura brasileira. Ontem, hoje, sempre. E na medida em que algum tipo de deslocamento se torna perceptível, a política hipócrita do don't ask, don't tell (não pergunte, não conte) se impõe com vigor. Ou seja, o ordenamento social (que adota modelos estáveis, sem o mínimo traço de ambiguidade) recomenda evitar qualquer tipo de referência ao amor que não ousa dizer o seu nome, conforme a célebre definição de Oscar Wilde, além de outras variações de comportamento sexual. A historiografia literária lembra, a todo instante, a maneira não muito cordial com que foram recebidas (pelos leitores, por parte da crítica) narrativas ficcionais como O Bom Crioulo (Adolfo Caminha, 1895), Crônica da Casa Assassinada (Lucio Cardoso, 1959), A Fúria do Corpo (João Gilberto Noll, 1981), Em Nome do Desejo (João Silvério Trevisan, 1983), Vagas Notícias de Melinha Marchiotti (João Silvério Trevisan, 1984), Morangos Mofados (Caio Fernando Abreu, 1987), Keith Jarret no Blue Note (Silviano Santiago, 1996), Berkeley em Bellagio (João Gilberto Noll, 2002) e A Inevitável História de Letícia Diniz (Marcelo Pedreira, 2006), entre muitos outros livros que optaram por transgredir com as regras do “bom comportamento” da classe média. Evidentemente – sem fazer concessões aos riscos propostos pela linguagem crua e agressiva –, a publicação de cada um desses textos serviu para ampliar o conflito.

Contemporaneamente, a sociedade brasileira tem registrado algumas mudanças de conduta. A intolerância diminuiu. Mas não muito. Provavelmente se tornou mais dissimulada. Ou sutil. Difícil precisar o que está acontecendo no interior do universo conservador que caracteriza a literatura produzida pelos brasileiros. Exemplos significativos dessa postura inovadora podem ser comprovados com a publicação de alguns romances de excelente qualidade literária – seja pelo domínio técnico, seja pela forma delicada com que os temas “proibidos” são abordados. Romances como Todos Nós Adorávamos Caubóis (Carol Bensimon, 2013), Nossos Ossos (Marcelino Freire, 2013) e A Vez de Morrer (Simone Campos, 2014), por exemplo, colocam em cena questões afetivas e sexuais que – de uma forma ou de outra – costumam ser omitidas. Ou ignoradas.

O romance Sergio Y. Vai à América, de Alexandre Vidal Porto, também propõe um tema correlato – mas com um enfoque diferenciado, que se concentra no olhar sensível do observador, que vê e relata os acontecimentos à distância. Assim como o leitor, o narrador está reduzido à condição de espectador – indivíduo que nada pode fazer para alterar a sequência de fatos que se desenrolam diante de seus olhos.

O psiquiatra Armando, setenta anos, faz de seu relato memorialista um ponto de reflexão para entender os motivos que resultaram em significativa mudança na vida de um de seus pacientes. Nas suas anotações sobre o caso, recorda que Sergio Emilio Yacoubian, dezessete anos, frequentemente se queixava nas sessões de terapia de ser infeliz. Aparentava ser um garoto deprimido. Um caso similar a tantos outros.

Uma interrupção no tratamento ocorre quando Sergio viaja para Nova York, em férias. Armando recomenda-lhe uma visita ao Museu da Imigração, no extremo sul de Manhattan, Você, que gosta de histórias de coragem, não pode deixar de ir ao museu de Ellis Island. Pode ser que você ache interessante saber mais sobre os imigrantes, ver seus objetos pessoais, conhecer histórias de gente que, como Areg [bisavô de Sergio], apostou tudo na própria felicidade.

Na volta, o paciente lhe entrega alguns presentes (comprados no Museu) e declara, Dr. Armando, acho que descobri uma maneira de ser feliz. Tive uma revelação em uma de nossas conversas e acho que já sei como encaminhar minha vida. Sinto que já não preciso voltar aqui. Desculpe-me não ter dito nada antes, mas eu não sabia. Obrigado por tudo.

O interregno cessa cinco anos depois, quando Armando descobre que o rapaz faleceu, em Nova York. Sem entender as razões da tragédia, volta a se interessar pelo caso inconcluso de Sergio. O que descobre não o conforta. Ao contrário, instala a perplexidade. Em Nova York, Sergio se transformou em Sandra. Literalmente. O sofrimento de estar preso em um corpo estranho, que não lhe pertencia, desapareceu. A migração de gênero (através de procedimento cirúrgico, medicação e auxílio psicológico) resolveu a angústia de Sergio, mas causou muita aflição em Armando. Como é que ele não havia percebido o que estava acontecendo com o rapaz? Será que estava perdendo a competência médica? Nesse momento, Armando – precisando encarar o fracasso profissional – descobre que nada pode ser considerado mais difícil do que prever ou controlar o que envolve a essência humana. Os mecanismos de defesa das pessoas são muito complexos. Os dos psiquiatras são piores ainda.

Os demais elementos narrativos são consequência do existir. Inclusive a morte violenta de Sergio. Mas, para a carpintaria literária, que está concentrada basicamente na figura de Armando, parte desses itens é acessória ou periférica. De qualquer forma, cansado, envolto pelo estoicismo filosófico, ele coloca a vida de Sergio/Sandra em perspectiva e conclui que Torno-me mais mórbido do que gostaria, mas é porque preciso me forçar a ter presente – eu, que tenho tendência a me sentir imortal – que todos morrermos em algum momento. Alguns prematuramente, como Sandra. Outros, muito depois do prazo de validade. Claro, ele é os "outros".

De uma forma pouco usual, no consultório de uma médica especializada em transgêneros, Cecilia Coutts, Armando desvenda aquilo que vários meses de terapia não foram suficientes para tornar inteligíveis. Na loja de souvenires do Museu da Imigração, em Ellis Island, a chave do mistério abriu a porta que parecia inexpugnável.

Escrito com fina sensibilidade, contenção narrativa e coragem, Sergio Y. Vai à América não pede permissão para abordar questões significativas para o entendimento da vida contemporânea, como os mecanismos psíquicos de identidade, a soberba da medicina e a transexualidade.
 


Raul J.M. Arruda Filho, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”.

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