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Ensaio Sobre a Cegueira [Ariadne Marinho Machado]

Ensaio Sobre a Cegueira


O filme “Ensaio sobre a cegueira”, dirigido por Fernando Meirelles em 2008, adaptação do romance do português Jose Saramago, retrata a história de uma pandemia altamente contagiosa de cegueira temporária que acomete os moradores de uma distinta cidade. Devido ao elevado índice de contaminação da enfermidade e o desconhecimento das autoridades médicas e governamentais das causas – bacilos, vírus ou parasitas – responsáveis pela inoculação da patologia em determinados indivíduos, o governo decreta por medida de segurança a profilaxia do isolamento. Desde que o Estado Moderno se consolidou, sua política está calcada em “fazer viver e deixar morrer” ¹ , ou seja, o isolamento dos enfermos infectados por uma cegueira repentina são mecanismos que possibilitam a regulamentação da população e da vida; de uma forma de saber político e médico, na arte de governar, o governo de si.


De acordo com os números de casos de cegueira registrados nos hospitais ou delatados pelos vizinhos, o governo compulsoriamente isola os enfermos no antigo hospício, um local ermo e distante da cidade. O hospício¹¹  faz alusão a persona non grata do “louco”, considerado desviante do padrão social de normalidade, por isso segregado do convívio da porção “sadia” da sociedade. Tudo isso associado a uma ideia de “Razão de Estado”, que racionaliza as estruturas dos saberes e das tecnologias de poder e correlações de força que emergem do Estado moderno. Neste Estado, o controle, a vigília, é estabelecido pelo Estado de polícia (responsável pela repressão social), que cria técnicas de controle da população dentro de saberes específicos consolidadas em conjunto com a prática da segurança .¹¹¹

Diante do isolamento forçoso das autoridades aos acometidos reside uma personagem não enferma, que finge estar doente para acompanhar seu marido médico e cego. Trancafiados e abandonados as suas próprias sorte, o governo estabelece Estado de Sítio, ou seja, a suspensão dos direitos civis e sociais.
Conforme Giorgio Agambén (Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. trad. Henrique burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012), tal estado corresponde à concepção da “vida nua”, as ações negativas do Estado como a segregação social por doença ou delito e até a condenação à morte de determinados indivíduos ou grupos, que o Estado julgar representar risco iminente à população.

Assumido assim características de um “campo de concentração”, os presos/segregados/isolados, com a constante vigilância da força armada, cercando o perímetro do edifício para evitar as fugas, e a escassez de alimentos e outros materiais para a subsistência, se desfaz a ideia do “contrato social”, da polidez humana, da ética, da conduta moral, e dá lugar a depravação e aos abusos da força. Neste local, a barbárie predomina – “o homem é lobo do próprio homem” tal qual Thomas Hobbes afirma. 

Neste clima insólito e nebuloso, de perversidade e primitivismo, o homem não perde a característica primordial de sociedade, de viver em grupo ou família. A mulher do médico lidera a sua unidade familiar, auxiliando-os e guiando-os com o pulso de um pastor que impõe seu poder de mando e conduz o seu rebanho. Uma estranha tecnologia do poder ao tratar a imensa maioria dos homens como ‘gado’, presente em nossa sociedade ocidental.

A obra nos inquire até onde vai a barbárie humana, a aceitação cega dos dispositivos impostos, a conduta de cordeiros em rebanho manobrado por pastores sádicos, que nos afivela com antolhos para controlar nossas vontades, nossos saberes, nosso poder de decisão em sociedade, a submissão e enclausuramento. A cegueira é uma metáfora utilizada para compreendermos à falta de visão de mundo que nos circunscreve. Saramago mesmo afirma, “Acho que não ficamos cegos. Acho que sempre fomos cegos. Cegos apesar de conseguirmos ver. Pessoas que conseguem ver, mas não enxergar” (SARAMAGO, Jose. Ensaio sobre a cegueira. Companhia das Letras: São Paulo, 1995, p. 90).



¹Pode ser compreendido, grosso modo, como o Estado deve proteger o direito de vida da sua população e, inferido o dever de morte ou clausura, a quem coloque em risco este direito. Ver Michel Foucault, O nascimento da Biopolítica. 

¹¹Instituição ainda existente em muitos países, principalmente na América Latina.

¹¹¹MARINHO, Ariadne. Lepra: mancha anestésica e morte anunciada no isolamento social. ANPUH, 2011. 


Ariadne Marinho Machado é mestre em História pela UFMT. Graduada em História (UFMT), aprecia artes plásticas e poesia, em especial, Vincent Van Gogh e Pablo Neruda. 

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